Crônicas da vida urbana
Por Crônicas da vida urbana -
Causo rodoviário
Essa história já tem várias décadas – então vocês me desculpem alguma imprecisão narrativa. Além de eventual falha de memória, as coisas eram, nas estradas brasileiras, muito diferentes de hoje: eram piores, mas havia menos irresponsabilidade de caminhoneiros e motoristas em geral – de modo que, num certo sentido, serem piores, as fazia melhores... os acidentes eram muito raros.
Pois eu descia para algum trabalho, dirigia o carro algum amigo devidamente habilitado e responsável. Era logo depois da hora do almoço, muito calor, janelas totalmente abertas. A algumas centenas de metros à nossa frente, outro veículo, maior e mais vistoso. Pelos cabelos vistos da nossa perspectiva, dirigia uma moçoila e a seu lado havia um rapaz. A conversa – ou discussão, como a gesticulação permitia supor – era animada. De repente, voam pela janela do passageiro, dois objetos que reluzem ao sol, e que no ato não percebemos do que se tratava – ao passarmos por eles, jogados no acostamento, percebemos que era um par de calçados femininos chamados – vá-se lá saber porque, não é hora de investigar – “mules”, de acrílico, com saltos altos.
O carro à frente foi para o acostamento e a porta do motorista foi aberta violentamente – o amigo que dirigia, achou melhor parar também fora da pista.
Desceu, cara de enfezada, uma moçoila bem apanhada, vestindo apenas uma camiseta sobre o biquini, descalça, e correu pela lateral, do carro dela e do nosso, passando por nós sem nos ver, e continuou correndo. Detalhe importante, o asfalto estava pelando, e a corrida dela era acompanhada de gritos e pulos, coisa que não dava pra saber se era erótica ou cômica. Depois de algumas dezenas de metros – nós, evidente, na assistência atenta – achou os mules jogados, catou-os com uma interessante abaixada e voltou para seu carro, sempre correndo, gritando e pulando. Jogou os calçados pela janela de trás no banco do carro, voltou a entrar – a porta tinha ficado escancarada durante todo o espetáculo – e arrancou, de volta à estrada.
Poucos carros tinham passado, num sentido e noutro, ela os ignorara solenemente como se não existissem.
Discutimos o acontecimento até chegar ao nosso destino, mas não conseguimos elaborar uma hipótese totalmente satisfatória. A que mais se mostrou provável, é que se tratava de um arrufo de namorados, centrado nos mules, que por alguma razão ele detestava – e dos quais tentou, sem sucesso, se livrar...