Crônicas da vida urbana
Por Crônicas da vida urbana -
Nostalgia ferroviária
Não, não é mais um catilinária anti-carro. Quem mora numa cidade e ainda não percebeu o peso do carro na queda em direção ao fim do mundo, não vai mudar de opinião por causa de uma crônica...
Trata-se de um tipo de sensação que nenhum outro tipo de transporte proporciona, só o trem. Nem navio, nem avião – e na verdade, nem os bólidos modernos tipo Ítalo-Ferrari, em seus 320 km/hora – proporcionam as sensações dos trens convencionais. Proporcionam outras, evidente, mas boas na medida em que nos levam de um ponto a outro do planeta, o percurso em si fica menos curtível. Sejam as maria-fumaça, diesel ou elétricos – mas o tipo de trem que estendeu redes pelo planeta, em redes menos agressivas que as rodovias.
Com vento favorável, escuto nas madrugadas os apitos das locomotivas cruzando passagens ao nível – e mesmo os ruídos dos seus pesados mecanismos de ferro. E sonho.
Chegar a uma estação ferroviária de madrugada, o entorno ainda meio submerso em neblina, encontrar uma certa quantidade de pessoas que procuram pela mesma passagem – já é coisa antiga. Nem ônibus, nem trem, nem avião, hoje se você não chegar à estação com um ticket no bolso, provavelmente volta pra casa sem chance de viajar.
O trem é uma comunidade se deslocando – na paisagem, rural ou suburbana, as pessoas nos olham das janelas, as vacas nos campos fingem não estar vendo, a própria composição só se percebe, pelas janelas, nas curvas acentuadas. Desde o início da viagem, a sensação de “estar saindo” de algum lugar é intensa: a estação lá parada, depois desaparecendo na distância, sendo substituída por outras construções e paisagens.
Aquele – to-toc, to-toc, to-toc que nos trens modernos também desapareceu, reforça a sensação do deslocamento. Nas paradas, a comunidade viajante encontra outra estação, se renova em pessoas que entram e saem, nas janelas vêm – vinham, eu sei – pessoas que oferecem coisas que nos atuais vagões-restaurantes não existem mais: só tem refrigerante e sandubas insípidos.
E chegar ao local que se pretendia, se não for um ponto final, é mais uma estranheza: você fica e a comunidade com a qual viajava continua para outros destinos, te abandonam sozinho na plataforma da estação. O trem continua, aumenta a velocidade, desaparece numa curva, sempre fiel aos trilhos. O grupo dos que ficam se dissolve, sai da estação que esvazia – fica ali aguardando pela próxima chegada, que agitará tudo de novo, um tipo de sístole-diástole à qual assistem, impassíveis, os seres da paisagem: morros, árvores, pedras, os próprios trilhos.
Tudo no silêncio, uma sensação de calma em contraste com os agitos da viagem e da chegada.