É memória recorrente no pessoal da minha geração: o leiteiro que entregava na madrugada as garrafas cheias e recolhia as vazias. Vinha numa carrocinha puxada a cavalo – ou melhor, uma égua. Essas chegaram a criar um dito: “ensinada como eguinha de padeiro”, isto é, não precisava ser conduzida. Conhecia tão bem o serviço que quando o leiteiro subia, não precisava usar as rédeas, fazia o percurso no piloto automático, parando sempre diante das casas onde havia entrega a fazer.
Uma vez por mês, seu Alfredo recolhia junto com as garrafas vazias, o dinheiro deixado pelos moradores da casa – é sim senhor, dinheiro deixado na rua, embaixo na garrafa para o vento não levar...
Para quem acordava muito cedo – nós que tínhamos aula, por exemplo – dava pra dar um dedo de prosa, no qual o assunto mais infalível era o clima.
- Será que chove, seu Alfredo?
- Não, hoje não chove. E é pena, a plantação tá precisada.
Seu Alfredo tinha um índice de acerto de uns cinquenta por cento, bem maior que as atuais previsões feitas com satélites e o diabo a quatro da tecnologia espacial e digital. Notar que sua previsão sempre coincidia com a da vizinha dos fundos, uma senhora que prescindia de equipamentos e fazia suas previsões segundo seus calos e seu reumatismo.
E era muito mais simpática aquela conversa, com o leiteiro que acordava na madrugada para ordenhar as vacas e, com chuva ou sol, fazia suas entregas religiosamente. E entregava um leite com o gargalo da garrafa no qual sobrenadava a nata – que, retirada e armazenada com a de outros dias, resultava em biscoitos de natureza divina.
Seu Alfredo, com seu gorro de abas caídas nas laterais para proteger as orelhas do frio das madrugadas planaltinas, fazia parte de uma galeria de personagens urbanos que, diferenciados por suas ocupações, eram no entanto seres individualizados, únicos e inesquecíveis.
Como o sapateiro que trabalhava num porão a meia quadra de distância – sujeito grandalhão e de poucas palavras, meio misterioso até, que remendava os calçados estropiados pelas brincadeiras de moleque e colocava, a contragosto, reforço na extremidade dos saltos das moças.
Ou como o consertador de guarda-chuvas, que me esperava passar depois da aula para reclamar de que alguém da família tinha deixado uma sombrinha para consertar há muito tempo e não viera retirar...
Que fim levou seu Alfredo e toda essa gente? Me pergunto até que ponto nossa vida urbana é tão insípida e as cidades tão impessoais por falta desses personagens. Que nada tinham de excepcional – e talvez por isso mesmo, se integravam à vidinha de então, sem maiores pretensões além de ganhar a vida honestamente. O problema, acho eu em momento de otimismo, era esse “honestamente”...