Em geral
Por Em geral -
A maior das perdas, a identidade
Se o mundo todo fosse azul, o azul não existiria.
Tudo que os homens percebem é mudança de padrões – cor, luz, tom, volume. Assim são notados os entes mais simples.
Há um sistema de conceitos subjacente às palavras de cada língua natural; para designá-los é que se inventam nomes. Quando um conceito não existe na cultura, não se nomeia e é difícil reconhecê-lo. Por exemplo, em português, distinguir accountabitity de responsability ou, em inglês, língua de linguagem.
Para que se possa referir aos entes utilizando número limitado e manejável de conceitos, eles são agrupados segundo as formas que exibem, as ações que desempenham e os estados em que parecem notáveis aos homens. Exclui-se o detalhe, o específico. A busca de características funcionais comuns explica a criação dos modelos, padrões e metáforas: a noção de estrutura, de ciclo, a lineralidade espacial do tempo etc.
O conjunto das formas, ações e estados de um ente – suas funções – é outra maneira de identificá-lo, além da imitação ou semelhança. Dicionários definem os nomes dos entes pelas funções deles. No entanto, como em todo sistema em que as proposições se definem umas pelas outras, algumas restarão indefiníveis. A função indefinível de todos os entes, ainda daqueles que não existem – não se mostram (‘ex+stere’ quer dizer ‘mostrar-se’) mas são imaginados ou necessários em alguma teoria -- é ser. “Ente é aquilo que é” seria uma proposição circular, pois, tautológica.
Funções recebem nomes, embora não tenham, por óbvio, a materialidade dos entes de algum mundo possível. Funções que unem dois entes são relações. Se A ama B, isso é amor e, pois, A é amante e B é amado: amante e amado são funções de A e de B nessa proposição: a partir de cada relação, designam-se seus termos; pode-se, então, definir A como amante de B e B como amado de A. Se A fala a B, temos um falante, um ouvinte e um enunciado.
Uma coisa é voar ou ‘ser/estar alegre’; outra parar o voo no tempo e discorrer sobre ele, congelar a alegria sem haver quem a tenha. Materializar esses rótulos para falar deles – por exemplo, propor algo sobre o amor, a beleza, a sabedoria ou a justiça – foi sempre complicado: daí se criarem ícones e deuses, cupido e balança; Vênus, Atena ou Xangô.
Atribuem-se aos rótulos de funções outras funções, em terceiro, quarto graus: a abstração, aí, será maior: amplia-se a natureza complexa dos conceitos e sua ambiguidade.
Eventos se sucedem no mundo, mas a noção de causa é necessidade nossa. Nada na natureza é amável, justo, livre ou verdadeiro: nós é que aribuímos isso a ações e estados dos entes, criando denominações de difícil explicitação.
Cada sociedade constrói e reconstrói, assim, geração após geração, um sistema específico, diferenciado, de conceitos pelos quais representa o mundo, as impressões sensórias e o sentido que atribui às coisas: serão esses seus valores, mais duráveis e resistentes do que atitudes e preferências eventuais. Tais conceitos (de amor, liberdade, justiça, direitos, a noção de causa etc.) são a mais nobre especificação de uma comunidade humana.
Pode-se dizer que um povo colonizado perde sua cultura de origem quando adota os valores embutidos em conceitos similares impostos pelo colonizador, em lugar de evoluir a partir dos dele próprio, integrando e assimilando informações na troca de bens e de palavras.
Os antropólogos recuperam essa experiência do passado histórico. Nós a estamos vivendo agora.
P.S.: Não sei se o comandante do Exército teve acesso a reflexões desse nível ao mencionar recentemente o grave risco que o Brasil enfrenta de perda de identidade, mas expressou o temor e, de fato, o caso é esse.