Em geral
Por Em geral -
Desconfiados e desconcertados
Anos e anos de discursos a favor de nada, promoção da culpa e do castigo. Eis o efeito.
O IBGE aponta o desalento dos desempregados – seu desânimo ou desesperança de conseguir emprego --, como fator responsável pela manutenção na faixa de 13 por cento dos índices de procura de postos de trabalho, embora a desocupação seja quase o dobro, perto de um quarto da população trabalhadora.
Os jornalistas desportivos e as agências de publicidade que prepararam campanhas oportunistas espantam-se com o desinteresse, a desmotivação dos brasileiros, até agora, pela Copa do Mundo que começará em mais três semanas – o desencanto diante de uma competição que sempre motivou hipérboles e boas vendas.
O que há de comum nos dois parágrafos acima é a insistência no prefixo latino “des-”, a “falta de” alento, esperança, emprego, ocupação interesse, motivação, encanto. Esse estado de espírito inscreve-se em uma série de outras categorias negativas, marcadas pelo prefixo grego “a-”, geralmente preferido na nomenclatura científica.
A mais precisa dessas categorias é a aporia, ausência de sentido, dificuldade racional em encontrar resposta para indagações filosóficas, tais como “o que é” ou “o que significa”; o tropeço em situação insolúvel, sem saída. A aporia implica a abulia, incapacidade de tomar decisões, e a apatia, estado de esmaecimento dos sentidos, alheamento ao que antes motivava. Sem que haja lesão neural, ocorre equivalente psicológico da afasia, dificuldade de compreender mensagens divergentes e expressar o que de novo se quer dizer.
Pode-se ainda alinhar a agonia – angústia, aflição – dos mais sensíveis e conscientes da realidade. A síntese, porém, disso tudo potencializa a anomia, situação em que as pessoas são forçadas ou estimuladas a violar regras sociais, a sociedade as tolera e até aplaude se alcançam êxito.
A anomia é um mecanismo de desintegração da sociedade descrito por Émile Durkheimiano, pioneiro (com Karl Marx e Max Weber) da ciência social moderna, e que o sociólogo Robert Merton, falecido em 2003, aponta como forte obstáculo ao desenvolvimento econômico. Não é novidade em faixas mais elevadas da sociedade brasileira – ela se compõe com a corrupção, o nepotismo e compadrio, tão comuns – mas atinge expressão plena em favelas e periferias, onde as normas sociais urbanas perdem sentido e são substituídas por outras, com lógica diversa, radical e incompatível.
Ainda há dias, o médico Dráuzio Varela apontava, em entrevista à BBC, a inadequação dos mecanismos de mobilidade social por mérito próprio para estoques humanos em que a família é geralmente composta de mulheres, filhos e netos – a “liberação feminina” implicou, aí, maior irresponsabilização dos homens –, a transgressão é norma e a marginalidade propõe futuro promissor aos jovens.
Pode-se supor que, no momento, em lugar de a cidade incorporar a favela-periferia, é ela que está engolindo a cidade, da base ao topo.
É nesse sentido, concreto e amargo—e não em utro plano, intimista ou metafísico --, que se deve entender a advertência de Paulo Freire quanto às consequências do pensamento negativo, percebidas, em geral, quando é muito tarde para confrontá-las.