Em geral
Por Em geral -
O elogio e o réquiem do trabalho
(No 200o- aniversário de Karl Marx, hoje, uma atualização da contradição dialética) Café da manhã, elevador, carro. Endereço, silêncio, cochilo, paisagem. Parada, abastecimento, silêncio. A máquina estaciona na vaga indicada pelo GPS. Ah! Como é bom estar no futuro! Vamos ao trabalho! Que trabalho? Em teoria – o vestibular da prática – máquinas podem desempenhar qualquer atividade que envolva reconhecimento de padrões, dedução lógica e indução probabilística – isto é, quase tudo que os humanos fazem, à exceção do que é fisiológico e do que se concebe no vago campo da intuição: podem dirigir automóveis, aviões, navios; operar portos, linhas de montagem; formular diagnósticos a partir de exames clínicos; projetar edifícios e cidades; redigir petições na conformidade com as leis e até sentenciar a partir delas. Isso com a tecnologia conhecida, que é sempre menos do que a existente ou a que existirá. Quais trabalhos sobrarão? Os homens sempre refizeram o entorno a partir de suas necessidades, paixões e fantasias: extraíram da natureza frutos e ervas; cultivaram e domesticaram espécies vegetais e animais; criaram instrumentos, casas, trajes, trilhas, deuses, jarros e bibelôs. Mas o trabalho, como conhecemos, decorre de uma linhagem de modos de produção que começa com a escravatura, evolui para a servidão e, daí, para o proletariado – formas que foram mais ou menos cruéis e se distribuíram diferentemente ao longo da história das civilizações e dos impérios: a servidão substituiu a escravidão na Europa, com a erosão do poder romano e a implantação do feudalismo, no começo da Idade Média; permaneceu, no entanto, na África e ressurgiu, na América, como estratégia para colonização, logo após o Renascimento. O proletariado que se formou, três séculos depois, com a Revolução Industrial, massificou nobres profissões de artesãos medievais – tecelões, ferreiros, gráficos etc. – e, em intensa luta de classes, fracionou-se em escala variada de funções com prestígio social distinto, do peão ao gerente, do estagiário ao projetista sênior. Por terrível que seja lembrar as tragédias da exploração de uns homens por outros, é forçoso reconhecer que nossa realidade resulta disso e que pirâmides e muralhas da História Antiga continuam a ser erguidas: a reconstrução da Europa devastada, a transformação da China em potência industrial ou o milagre que fabricou foguetes e armou como que há de moderno a Coreia do Norte, onde não sobrara prédio em pé e metro quadrado de solo urbano não banhado pelo napalm dos bombardeios americanos, há 65 anos. Portentosa e sofrida herança do trabalho constitui a atual civilização, que retém, em cofres, patentes e direitos, sabedoria capaz de libertar os homens da tortura de agir por obrigação e liberá-los para se realizarem na interação com sua comunidade. Essa contingência nos coloca em um impasse de que podem resultar sociedades em que (a) o conhecimento seja banido ou confinado, de modo a manter a ordem constituída, a contradição de classes e o sistema legal que herdamos dos antepassados; (b) todos disponham do indispensável, e o demais se distribua conforme a importância, a qualidade e o valor dos atos humanos para o bem comum: ou (c) a população excedente seja excluída. À escolha.