Em 2017, em entrevista ao escritor francês Dominique Wolton, ao ser questionado sobre a possibilidade de casamento de casais do mesmo sexo, reagiu: “Chamemos isso de ‘união civil’. Nós não brincamos com a verdade”.
Quando cardeal em Buenos Aires, Bergoglio exortou os bispos argentinos a apoiarem as uniões civis. Teve papel de destaque em 2010, quando o governo argentino avaliava se permitiria o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Agora, reafirmou sua posição no documentário “Francisco”, sobre os seus sete anos de pontificado, dirigido por Evgeny Afineevsky e estreado em Roma em 21/10. Ele afirma que gays são “filhos de Deus” e “têm direito a uma família”. E acrescenta que as leis de união civil protegem os direitos legais das pessoas que mantêm relacionamentos homoafetivos.
O tema surge no filme quando aparece o depoimento de Andrea Rubera, homossexual italiano que participa de missas na casa Santa Marta, no Vaticano, onde mora o papa. Rubera conta ter entregado a Francisco uma carta, na qual ele e seu parceiro manifestam receio de levar os filhos à igreja, com medo de serem rejeitados por terem pais gays. O papa telefonou a Rubera e o encorajou a fazê-lo e, inclusive, conversar com o pároco a respeito da união deles.
Chris Vella, da Rede Global de Católicos Arco-Íris (GNRC, sigla em inglês), que representa mais de quarenta organizações dos cinco continentes, declarou ao receber a notícia do posicionamento do papa: “Como homem casado, em casamento civil do mesmo sexo desde 2018, olho com esperança para um futuro em que a Igreja não apenas reconheça as uniões civis para casais do mesmo sexo, mas também celebre seus relacionamentos como sinais sagrados e sacramentais do amor como presença manifesta de Deus no mundo. A Igreja deve celebrar nossa fidelidade, compromisso, perseverança e fecundidade tanto quanto celebra essas qualidades para as uniões heterossexuais”.
Esse reconhecimento de Francisco, contudo, não muda a doutrina da Igreja Católica. Ela continua a não abençoar sacramentalmente uniões homoafetivas. O que é óbvia contradição, em especial por proclamar, doutrinariamente, que o valor supremo entre um casal não são os direitos decorrentes da união, e sim o amor que suscita e alimenta a relação.
Ainda levará um tempo para a Igreja adequar seu duplo discurso, o para fora e o para dentro da instituição. Padres e bispos não podem fazer casamento religioso de gays, mas são cada vez mais frequentes as bênçãos a esses casais, ainda que não tenham seu matrimônio registrado na paróquia. Para fora, a Igreja defende que todos os direitos da mulher devem ser assegurados e toda discriminação de gênero, combatida. Para dentro, as mulheres continuam impedidas de acesso ao sacerdócio, ao episcopado e ao papado. O machismo, o patriarcalismo e a misoginia prevalecem.
A manifestação do papa, porém, traz importante contribuição para o Brasil: agora fica muito mais difícil para o Judiciário aprovar a obsessão bolsonarista de descriminalizar a homofobia.
* Frei Betto é escritor, autor de “Sexo, orientação sexual e ‘ideologia de gênero’”, entre outros livros. Livraria Virtual: freibetto.org