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As serpentes reencarnadas


A história da serpente que assedia Eva é o primeiro relato bíblico de um episódio de corrupção.

Ao ofertar àquela ancestral o figo ou o damasco do pecado (no Oriente Médio, onde o evento se passou, não havia maçãs), o capeta inaugurou a tentação mais charmosa dos tempos que viriam.

Tão charmosa e demoníaca que, se muitos a praticam, outros que a ela resistem levam a má fama.

Getúlio Vargas, por exemplo, não nadava em mar de lama: era sujeito honesto e não se provaram desvios graves em seu governo; a República do Galeão, pelo contrário, cultivava terríveis germes da discórdia e do crime – um Veloso, um Burnier – despercebidos por Eduardo Gomes, com seu fascínio udenista pelo projeto de reproduzir os Estados Unidos do lado de baixo do Equador.

Nenhum militar mais defende tal objetivo: está hoje claro que não cabem na mesma América dois ferrabrases gananciosos e intolerantes. Somos, pela história, o contrário: crescemos sem roubar terras, nosso exército se negou a perseguir escravos e a matar índios, confraternizávamos com os vizinhos e o único porta-aviões que tivemos, e não temos mais, foi comprado em segunda mão.

Abrem-se, portanto, dois caminhos: ou o Brasil assume sua essência única e abraça o mundo com seus braços fortes; ou se contenta com réplicas de mau gosto do que há de lamentável no império do Norte – por exemplo, o estilo Hoover-Moro de fazer justiça ou a caricatura Trump de Bolsonaro.

A primeira trilha – do desenvolvimento autônomo e ação independente – foi seguida por Getúlio, Jânio, Geisel e Lula, com Juscelino e Jango de permeio e vários outros presidentes atrapalhando. Empacou, finalmente, diante de intrigas do demônio pós-nuclear que inverteu a máxima de Clausevitz: tornou a política continuação da guerra por outros meios.

A falaciosa divindade convenceu a porção vulnerável dos brasileiros de que o mal que subjugou Eva à serpente e contamina as sociedades desde então era, aqui, “corrupção do PT”. Para aceitar tal coisa, foi preciso esquecer todo o passado do país, da carta em que Caminha pede ao rei emprego para um parente às privatizações de Fernando Henrique Cardoso, escândalo de fim de século comparado à liquidação das grandes empresas soviéticas.

A eleição desse novo “inimigo único” repete fielmente as campanhas contra Getúlio e João Goulart, evidenciando que a guerra fria não terminou; retoma ainda intolerância mais antiga, ao reduzir o ideal democrático a um só modelo, a que se contrapõe qualquer outro. Isso faz menos sentido agora, quando não existem Alemanha nazista nem União Soviética e diferentes mecanismos de gestão competem com êxito e aparente estabilidade – por exemplo, o de ricos países nórdicos europeus, como a Noruega ou a Islândia; ou da China e de nações vizinhas no Sudeste Asiático em ascensão.

É inoportuno também porque há conflito global em curso ou iminente – e o Brasil não tem cacife para esse jogo.

Sendo os homens, por descenderem de Eva, sensíveis à tentação, a melhor forma de impedir que se corrompam, em qualquer regime, é afastar as serpentes e controlar o trânsito dos frutos em que mora o pecado – isto é, montar estruturas diplomáticas e administrativas profissionais, múltiplas e vigilantes; zelar pelo livre exercício das escolhas políticas impedindo o monopólio da fala e a dilapidação do bem comum; etc. Punir culpados, é claro, mas não como objetivo prioritário: fechar a torneira de um tanque que vaza não a fará o líquido fluir de volta, nem impedirá que vaze de novo.

O combate à corrupção é, pois, como a guerra às drogas ou ao terror, ocupação complementar; sua ampliação, ineficaz ou puramente retórica.

Um país entra em desgraça quando o aparelho de Estado – judiciário, forças armadas, diplomacia – e as instâncias que formam cidadãos do futuro – as redes de ensino – capitulam a palavras de ordem superficiais como essa: passa-se a crer que a população é, por natureza, corrupta ou estúpida e, portanto, a democracia não deve ser exercida pelo ou para o povo, mas a despeito do povo.

Feita a bobagem, cometidas injustiças, o próximo passo é recuperar a credibilidade e combater a infecção de ódio e fanatismo. E, mais, algo que os poderes não eleitos podem fazer e seria útil nas atuais circunstâncias: impor os deveres da boa educação formal – decretar o fim dos palavrões, das indiretas grosseiras, das divulgações caluniosas. Bastam, para isso, esforço educativo e a disposição de aplicar com rigor as leis que vedam injúria, calúnia e difamação.


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