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O império e suas armas - Terceira parte (a guerra do Brasil)
“Em tempos difíceis, lembrem êxitos do passado, augurem futuro radiante, e tenham coragem.” (Mao Tse-Tung, em tradução livre) A guerra dos Estados Unidos contra o Brasil - iniciada em 1945 e que, agora, parece prestes a concluir, de um modo ou de outro - propõe este questionamento: há 170 anos, a ideologia é tida como projeção na percepção coletiva de embates essencialmente econômicos; chegou a hora de refletir mais profundamente sobre a dialética dessa relação e o efeito das ações que, manobrando a tecnologia em contexto liberal, visam o domínio das consciências. Trata-se de uma agressão de natureza dominantemente psicossocial, voltada para as classes intermediárias, mas também para a base da sociedade. Para que se efetivasse, o Brasil tornou-se mais conhecido, em vários aspectos, pelos norte-americanos do que por qualquer brasileiro. Foram exploradas a estrutura oligárquica estaduais, o corporativismo e o compadrio; identificados os latentes choques étnicos e culturais; esmiuçadas as instituições do Estado nacional; e corroído, até onde foi possível, o amálgama (reduzido, nesse discurso, à condição de “hipocrisia”) que cimentando contradições, dava ao país única e surpreendente imagem de convivência pacífica. Por que o caminho demorado de infiltração e implosão foi o escolhido, e não ação armada, como tantas nesse período, da Guatemala à Síria? Basicamente porque países grandes e populosos como o Brasil não podem ser ocupados e dificilmente vencidos pela força, por mais frágeis que sejam suas defesas militares. Toda alavanca de persuasão depende de pontos de apoio. No caso do Brasil, tomado em conjunto, dois foram e são relevantes: a vulnerabilidade dos formadores de opinião a surtos depressivos, em que a autoestima se abala e o passado se avilta; e o viés autoritário, que alimenta, nos escalões intermediários, ressentimento, desprezo e ódio pela base da sociedade. Esta, tornada carente de ação solidária pela crise do sacerdócio católico no papado de João Paulo II, seria facilmente cooptada pela maré das igrejas-negócio, de denominação cristã mas ideologia compatível com aqueles negociantes e financistas que, segundo relatos do Novo Testamento, Jesus expulsou do templo de Jerusalém. A depressão é provavelmente eco ou herança do sebastianismo, sentimento de perda que marcou a decadência do império português após a batalha de Alcácer-Quibir, em que morreu o rei Sebastião, em 1578. Eça de Queirós, no quarto final do Século XIX, em um rascunho de novela não publicado em vida, relata suposta invasão de Portugal por tropas inglesas e resume o sentimento coletivo em uma sentença típica: “É uma choldra”. Fora períodos breves e extremados de exaltação, a tendência à autodepreciação se alimenta de versões que situam em passado local e remoto - e não nas circunstâncias e pressões externas sobre este país dependente - as raízes da frustração dos projetos de autonomia e prosperidade. Quanto à feição radical e violenta das burocracias - comum em toda a América Latina, mas acentuada no Brasil - decorre do encargo brutal de, a serviço de ínfima minoria de senhores, conter a massa de brancos pobres, mestiços, índios e negros - escravos, libertos ou foragidos - que constituiu a base primeira de nossa população. A brutalidade desses embates é geralmente omitida nos livros de História, embora presente, tanto agora quanto antes. Ela se manifesta não apenas nos choques físicos, mas também na constituição de uma cultura bacharelesca em que a Justiça se distribui de maneira diferente conforme a classe social dos beneficiários, litigantes ou réus. Considerando que o Direito foi o caminho escolhido pelos colonizadores para formação de seus primogênitos - incumbidos de tomar terras e calar resistências -, não surpreende a visão de mundo que alimenta o punitivismo ser tão comum, não só entre magistrados, promotores e policiais, mas também nas classes médias e populares. Não é diferente o percurso histórico da ação repressiva no passado nos Estados Unidos, mas, lá, alguns contrapesos que aqui não existem foram introduzidos. Quando militares, policiais, magistrados e professores de Direito foram induzidos a importar procedimentos, conceitos e doutrina norte-americanos - leituras radicais decorrentes da common law inglesa, inculpação por probabilidade, uso abusivo de armas etc, -- dissolveu-se facilmente o verniz de civilidade e garantia universal de direitos impresso na retórica jurídica e evidente em episódios como a campanha pela abolição da escravatura.