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Maternidade atípica: os desafios do cuidado e da aceitação

Luciana Viegas, pedagoga e ativista, fala sobre a experiência de ser mãe e as pressões da sociedade

Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

Um menino negro e autista, que assistia a um espetáculo infantil, no Rio de Janeiro, foi agredido por um home no teatro da Gávea. Ele estava perto do palco, brincando e cantando com outras crianças quando foi segurado com truculência por um homem que reclamava de ter muitas pessoas na sua frente. O caso aconteceu no dia 4 de maio.

Crianças com necessidades especiais correm o risco constante de violência por não se enquadrarem nos padrões esperados pela sociedade. Para as mães atípicas, cuidadoras de crianças neurodivergentes, essa realidade se sobrepõe à exaustão e às dificuldades da maternidade, que recaem especialmente sobre as mulheres.

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O Brasil tem cerca de 2 milhões de pessoas com autismo, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já o estudo Retratos do autismo no Brasil de 2023, revela que, dentro da amostra de pessoas autistas, 24,2% são, também, pessoas responsáveis por uma criança com o mesmo diagnóstico. É o caso de Luciana Viegas, entrevista do Pauta Pública da semana, que foi diagnosticada com autismo, junto com o filho mais velho, hoje com oito anos.

Viegas é pedagoga e diretora-executiva do Instituto Vidas Negras com Deficiência Importa. Na conversa, ela aponta caminhos e reflexões para transformar as dificuldades vividas por mães atípicas em luta para construir uma sociedade mais acolhedora, que entenda a diversidade. Ela também chama atenção para o fato de que, atípica ou não, cada experiência de maternidade é única e que o cuidado precisa ser coletivo.

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“Acessibilidade não deveria ser um conceito só de deficiência, deve ser um conceito dentro da ideia do cuidado.[…] O debate sobre maternidade atípica não pode ser isolado do debate da maternidade como um todo. Coletivamente, somos responsáveis pela educação de todas as crianças”, afirma Luciana Viegas.

Leia os principais pontos e ouça o podcast completo, que também traz depoimentos de mães diversas que compartilham diferentes perspectivas e vivências da maternidade.

Como foi pra você o momento em que você percebeu que o seu filho não se encaixava nos padrões que a sociedade considera típicos?

O Luiz teve o diagnóstico com 1 ano e 9 meses. O que é muito incomum para pessoas autistas. Ainda mais por questões da sociedade ter dificuldade de entender as nuances do autismo e de que o espectro se apresenta de diversas formas nas pessoas.

Como eu sempre trabalhei com educação e com pessoas com deficiência, lembro de ficar sempre me questionando do porquê que ele não atingia determinados parâmetros, por exemplo, por exemplo a comunicação dele. Eu já tinha entendido que estava para além da fala, mas ele gritava muito, principalmente quando estava com fome. Mesmo que a gente falasse que já estava preparando a mamadeira, ela tinha que estar no seu campo de visão, para ele conseguir entender.

Isso me chamou atenção, porque nenhuma criança que eu cuidava ou já trabalhei na educação tinha esse comportamento. Então o diagnóstico dele veio já a partir da minha percepção. Muitas mães relatam um luto, um processo de rompimento, quando se tem o diagnóstico do autismo. No meu caso não foi assim porque eu já trabalhava com crianças com deficiência. Mas eu tive que lutar pelo diagnóstico dele.

Eu tive que fazer com que as pessoas acreditassem que uma criança com 1 ano e 9 meses, não era disruptiva, não era mal educada, não era uma criança que não queria falar com outra. Era uma criança que tinha uma questão que precisava de atenção. Talvez esse processo do luto, pra mim, veio antes quando eu descobri que estava grávida e seria um menino negro. Eu sempre fui atenta às questões raciais e então naquele ano acompanhei um dado do mapa da violência, de que a cada 23 minutos um jovem negro era morto no Brasil.

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Me preocupava e me preocupa muito mais, a expectativa de vida dos jovens negros, sejam eles autistas ou não. Mas quando é autista, as desigualdades se aprofundam mais do que necessariamente no processo do diagnóstico do autismo. Porque eu sabia que no diagnóstico do autismo, a gente tinha como ou estimular, têm como desenvolver, tem como construir para que ele tenha uma própria identidade. Então esse processo de ruptura vem quando eu descubro que eu vou ser mãe de um menino negro. E quando eu descobri que era um menino negro autista, aí o processo foi mais complexo, mas eu consegui sair do luto à luta de uma forma muito rápida.

O processo de luto, ao receber um diagnóstico, é porque houve uma idealização do que deveria ser esse filho? Essa idealização do outro é uma pressão que vem de fora ou é uma pressão social que se introjeta no momento que se assume a maternidade?

Existe um padrão normativo idealizado no mundo. A gente não quer falar sobre isso, mas existe. Existe o típico, por isso que a gente chama de atípico. Essa idealização vem dessa pressão da não diversidade, da discriminação a partir do que é diverso.

Ninguém quer ter um filho com deficiência. Isso é a coisa mais comum nos grupos de mães que eu frequento e vejo. Também tem um outro processo que eu acho que é que contribui para isso, que é o como o médico dá esse diagnóstico. Quando vem um médico, ou vários médicos, senta com você e fala que temos um problema, e a ponta da resposta desse problema é um diagnóstico de autismo, de síndrome de Down, uma série de outros diagnósticos de deficiência. A gente tem um problema claro, explícito, de padrão, de idealização.

É muito comum no campo da deficiência, você ouvir isso das mães das crianças, das pessoas com deficiência, dizendo, meu médico falou que eu não ia ser nada. Meu médico me deu tantos anos de vida. Isso é muito duro. Eu mesma, enquanto professora, já ouvi isso de diretores de escola: “Olha, você não se apega muito a esse aluno, que esse aluno pode morrer a qualquer momento”. O que a mãe daquela criança não escutou no consultório médico ao ter o diagnóstico do filho?

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Então acho que é essa é a pressão imposta também pela sociedade, mas também a gente idealiza o futuro. Eu tenho refletido muito sobre infância, porque apesar da gente falar que protege a infância, na verdade, o que a gente faz hoje é idealizar a infância. A gente não olha pra criança com autonomia. E pra criança com deficiência, pior ainda. Porque a gente não sabe o que é autonomia. A gente não entende o que é autonomia. A gente acha que a autonomia é ser independente, que a autonomia é ser livre de qualquer pessoa. E não é isso. Autonomia é você ter o poder de escolha sobre o que você quer.

Essa é a regência da ética do cuidado. E, infelizmente, a gente idealiza, em um processo ruim e nocivo para todo mundo. Inclusive, dentro desse processo de idealização, a mãe é sobrecarregada. Porque ela tem que criar o filho idealizado e não o filho possível.

Dá pra viver a maternidade com menos culpas, com menos dores e sem se perder, do ponto de vista individual, nesse processo de cuidado dos filhos. O que você diria?

Eu acho que eu passei muito tempo sem conseguir me perdoar, por não viver uma maternidade idealizada. O que não foi nem por mim, eu entendi que vou fazer uma maternidade possível. E tá tudo bem se lá na frente o nosso filho olhar pra gente e dizer: “olha, acho que isso daqui não era o que eu queria”. É importante nesse processo se perdoar.

Olhar pra própria maternidade e dizer: “tá tudo bem você ser a mãe possível.” É tentar todo dia ser melhor, mas tá tudo bem não poder ser naquele dia. Não vamos acertar todas, mas também não vai errar todas. É ensinar essa complexidade da maternidade e fazer com que seus filhos entendam que você é um ser humano. Dizer, é assim mesmo, a gente fica triste, a gente fica feliz.

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Isso ajuda. Porque pelo menos dentro da sua casa com seus filhos, você vai se sentir acolhida. Não vai ser mais um lugar de pressão que a sociedade diz que tem que ser. Que essa mãe tem que ser boa, ela tem que ser uma ótima profissional, uma ótima mãe. Ela não pode chorar, ela tem que ser forte, ela não tem que ser humana. Então, se humanizar nesse processo ajuda a entender isso.

E busque apoio, rede de apoio. Não necessariamente precisa ser da família. Busque um momento seu com suas amigas, com uma amiga que está com a mesma situação que a sua, com uma amiga da internet, uma chamada de vídeo. Buscar esse momento é importante pra você. Deixa a casa bagunçada, às vezes tá tudo bem. Você é merecedora e isso já é um caminho possível nesse processo de conseguir passar e navegar por essa maternidade sem dor. Talvez tentar minimamente reduzir um pouco de dor, porque sem sofrimento eu não sei. Não sei se é possível ser mãe sem sofrer. Sem sofrer a gente não vai, mas não precisa doer.

Agência Pública | Por Andrea DiP, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, Rafaela de Oliveira | Edição: Mariama Correia




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