Colunas


Em geral

Por Em geral -

Armas para a regressão arcaica


Entrei no Colégio Militar do Rio de Janeiro, na cota de filhos de civis, por concurso público, em dezembro de 1946. Tinha 10 anos, completados no mês anterior, e fiz a prova por mandado de segurança impetrado por um político (em troca de voto, naturalmente): a lei só permitia o ingresso no ginásio aos 11, completos. Foi apenas ensino básico, mas devo muito àquele semi-internato e ao Exército brasileiro. Tanto que, passados 65 anos, sinto como ofensa pessoal a presença desses generais no estranho governo que brotou da guerra híbrida desfechada contra o Brasil - ao lado de gente que exclui ciência do ensino básico, contesta Galileu e Newton, pisoteia a obra de Rondon e ameaça a integridade e unidade nacionais conquistadas a ferro e fogo por Caxias. Pessoas toscas, associadas a demagogos, negocistas e milicianos. “O Exército”, dizia o nosso comandante da Terceira Companhia, o então capitão Murilo Otávio de Barros, ex-combatente da a Itália, “existe para garantir a paz. A pior coisa que pode acontecer a um povo é a guerra”. Por que diabos, então, meter-se na vida dos outros e esbofetear país vizinho? “O que é o Exército?”, nos perguntavam, em marcha. Respondíamos: “O povo em armas”. Por acreditar nisso, participei, com militares, intelectuais, líderes de sindicatos de trabalhadores e de estudantes universitários, da passeata que pedia a fundação da companhia estatal de petróleo: tinha 15 anos. Nosso professor de História – também do Instituto Rio Branco –, Pedro Ribeiro, que elegeríamos paraninfo, mostrava, de pé, segurando em cada mão um livro de arte, quadros de Velasquez e Rubens, e apontava o significado político das escolhas estéticas na longa campanha pela independência da Holanda (então sob domínio espanhol), onde prosperava o capitalismo bancário, no começo do Século XVII. Foi ele que, no segundo ano do curso científico, mandou-nos ler longo prefácio de uma peça de Bernard Shaw e o Manifesto do Partido Comunista, de 1848, para cobrar, na prova parcial, “a comparação entre os conceitos de socialismo utópico e socialismo científico”. Por indicação de um professor – lembro-me do posto: era major –, li os dois volumes da Introdução à Antropologia Brasileira, de Artur Ramos. Na Matemática dividida em disciplinas (Aritmética, Álgebra, Trigonometria, Geometria Descritiva, Desenho Projetivo), no melhor estilo positivista (Ah, o velho professor Alexandre Barreto, que chamávamos de “Alex Babá!”), chegamos ao cálculo diferencial e tivemos noções de integrais; Física (o átomo), Química (o petróleo), Biologia (os antibióticos), Música (Villa Lobos, a Infantaria, “das armas a rainha”). Aprendemos a ler, compreender e traduzir do inglês, francês, espanhol e latim. No fim do curso, tinha bom conhecimento básico de inglês, francês, espanhol, e analisava a sintaxe de textos latinos. Do De Bello Gallico (Sobre a guerra da Gália), de Júlio César, a trechos do relato em francês do cerco de Calais por Eduardo VIII, no Século XIV; de Jane Austin a Oscar Wilde, na Balada do Cárcere de Reading - “I never saw a man who looked/ With such a wistful eye/ Upon that little tent of blue/ Which prisoners call the sky ...”.(“Nunca vi quem fitasse/ com tanta melancolia/ essa tendinha azul/ que os presos chamam de céu”). Terei sido um menino diferente? Durante anos, apaixonei-me por Camões, decorei trechos de Os Lusíadas e sonetos – este tão atual: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança...” Na prova oral do exame final da terceira série (havia tal coisa: falava-se, discutiam-se ideias), meu ponto foi discorrer sobre o pessimismo europeu nas últimas décadas do Século XIX: Nietzsche, Spencer, Schopenhauer. Imaginem, pois, minha tristeza: o que aconteceu com a formação de nossos oficiais? O que fizeram das escolas militares? Ou, sonho e consolo, haverá ocultos planos de inteligência para o renascimento após esse mergulho, para além da ética, à profundeza da alienação cultural e ignorância geopolítica?


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

Leia mais

Em geral

Nazismo

Em geral

Meias verdades são mentiras interesseiras: o caso Geisel

Em geral

A geopolítica da guerra ideológica

Em geral

Opinião pública - o caminho (das pedras) dos livros

Em geral

O ensino da razão e a multidão emotiva

Em geral

Um país colorido virado em preto e branco

Em geral

Amazônia: ninguém devasta aquilo que preza

Em geral

A narrativa e suas fraudes

Em geral

O império e suas armas - Terceira parte (a guerra do Brasil)

Em geral

O império e suas guerras - segunda parte (A metamorfose)

Em geral

O império que nos domina: 1 - O começo

Em geral

A resistência pela ataraxia, e o que nos leva a ela

Em geral

O ódio instrumental e a ordem perfeita

Em geral

Os dois nacionalismos brasileiros

Em geral

Por uma nova direção

Em geral

Um papo com o general

Em geral

A universidade e o desmonte de tudo

Em geral

A milícia ascende ao planalto

Em geral

A nossa república de Vichy

Em geral

Sobre ensino básico



Blogs

A bordo do esporte

Fórmula E apresenta fundo para apoiar projetos sociais

Blog da Jackie

"Alegres" reunidos

Blog do JC

Regularização fundiária na Santa & Bela Catarina

Blog da Ale Francoise

Sintomas de Dengue hemorrágica

Blog do Ton

Amitti Móveis inaugura loja em Balneário Camboriú

Gente & Notícia

Warung reabre famoso pistão, destruído por incêndio, com Vintage Culture em março

Blog Doutor Multas

Como parcelar o IPVA de forma rápida e segura

Blog Clique Diário

Pirâmides Sagradas - Grão Pará SC I

Bastidores

Grupo Risco circula repertório pelo interior do Estado



Entrevistão

João Paulo

"Essa turma que diz defender a família ajudou a destruir a boa convivência em muitas famílias. Na defesa de um modelo único, excludente"

Entrevistão Peeter Grando

“Balneário Camboriú não precisa de ruptura, mas de uma continuidade”

Juliana Pavan

"Ter o sobrenome Pavan traz uma responsabilidade muito grande”

Entrevistão Ana Paula Lima

"O presidente Lula vem quando atracar o primeiro navio no porto”

TV DIARINHO

O senador catarinense Jorge Seif Junior (PL) apareceu alterado em uma live que fez no Instagram na noite ...



Podcast

Ônibus voltam a circular em Itajaí após acordo

Publicado 09/05/2024 19:08


Especiais

MEIO AMBIENTE

Maioria de deputados gaúchos apoia projetos que podem agravar crise climática

Na Estrada

Serra catarinense com pousada de luxo e os melhores vinhos de altitude de SC

ENTREVISTA

Elon Musk está engajado com extrema direita, diz advogada e ativista de direitos digitais

IMUNIZAÇÃO

SC aguarda mais remessas da vacina para atender todas as regiões

DENGUE

Para entender os mitos e verdades sobre a doença



Hoje nas bancas


Folheie o jornal aqui ❯








MAILING LIST

Cadastre-se aqui para receber notícias do DIARINHO por e-mail

Jornal Diarinho© 2024 - Todos os direitos reservados.
Mantido por Hoje.App Marketing e Inovação