Em geral
Por Em geral -
Da liberdade e seus limites
Diga a um pobre que ele é livre; que pode, por exemplo, xingar o patrão e ir a Roma ver o papa. Ele lhe responderá que não tem meios de fazer nenhuma dessas coisas. Se entendesse de discursos enganosos, o acusaria de cometer falácia de ambiguidade: o sentido, em português, de “pode” conjuga as noções de permissibilidade (“may”) e materialidade (“can”).
Mas nem só por esse duplo significado do verbo “poder” o uso político costumeiro do conceito de “liberdade” é uma fraude: seu vício principal é que serve para priorizar uma dimensão do homem, valorizada pela ética luterana – em prejuízo de outra, que põe em primeiro plano a construção da individualidade pelo entorno social, de modo que cada olhar do outro, do início ao fim da vida, é o espelho em que a gente se vê.
A personalidade é uma construção cumulativa de experiências externas sobre uma herança genética que, no geral, é pouco relevante. A espécie humana é gregária – menos do que as abelhas e as formigas, quase tanto quanto as rezes no rebanho, mais do que os lobos em alcateia; o livre arbítrio, quando não é mera fantasia, submete-se à imposição social, de modo que os comportamentos são limitados a um elenco de possibilidades disponíveis em cada sociedade. Os eremitas são raros e quase sempre motivados pela fé, que é um forte liame social.
Mesmo os heróis criados pelos europeus para exaltar sua fantasia autonomista tiveram companheiros na solidão, eventualmente mais interessantes do que eles mesmos, como Friday, de Robinson Crusoé, personagem de Daniel Defoe (1719). Em alguns casos, a necessidade de companhia dramática se estende a animais humanizados, como a Cheetah, de Tarzan, ele mesmo cria de macacos, na invenção de Edgar Rice Burroughs (1914), ou filosóficos indígenas, como Cacambo, companheiro de Candide, guiado pelo otimismo obstinado do Professor Pangloss na sátira de Voltaire (1759). Voltaire era banqueiro; supõe-se que o sábio Pangloss represente um economista poliglota da época (daí o nome, do grego pan=toda, gloss=língua), desses que, estando no poder, sempre se acham no melhor dos mundos.
Na prática politica do tempo atual, projeta-se a contradição entre liberdade individual e segurança: quanto mais livre é o homem, menos garantias sociais terá. Toda manipulação publicitária liberal consiste em convencer as pessoas a trocar itens da seguridade social – garantia de atendimento à doença, educação, aposentadoria etc. – pela incerta possibilidade de ter tudo isso, e muito mais, sendo livres para competir, sobrepujar e, eventualmente, tripudiar sobre os demais.
Também é equívoco reduzir o conceito de democracia à liberdade de expressão. Em primeiro lugar porque a democracia, ao impor a decisão da maioria do povo em questões centrais da administração pública, coloca a liberdade de palavra como instrumento, não finalidade.
O que deve prevalecer são as máximas de Grice, uma das quais manda não afirmar o que se crê ser falso ou de que não se tem prova suficiente de veracidade. Esse é um limite ético cuja transgressão continuada ameaça, agora mesmo, entre nós, desacreditar a democracia.
O sentimento de liberdade decorre da libertação; inexistindo opressão – o que se espera em um estado democrático ideal – , a liberdade seria o ambiente constante, portanto crescentemente trivial. Isso não acontece: na verdade, a democracia não se reduz ou cabe em modelos: não é qualquer forma de exercício de poder existente, mas um alvo a que se busca chegar por vários caminhos criados pela História dos povos, sobre as contradições das sociedades de classes e as divisões herdadas de origem mais remota.