A discórdia quanto ao uso da palavra, que é registrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) da Academia Brasileira de Letras, rolou porque a policial militar Marcela da Silva Morais Pinno era chamada na audiência pela patente no gênero feminino por parlamentares da base governista.
Marcela é cabo da PM do Distrito Federal e prestou depoimento na CPMI porque atuou no batalhão de choque no dia do ataque às sedes dos três poderes. Na ocasião, ela foi agredida ao tentar conter os invasores, chegando a ser jogada de uma altura de três metros da cobertura do Congresso Nacional.
A mudança de gênero para a patente da policial tirou o foco das discussões da CPMI. “Soldado Marcela, soldado. Segundo aqui o dicionário, não existe sargenta, caba, soldada...”, se manifestou Seif, reclamando da palavra “soldada”. Ele estava ao lado do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que ria.
Incomodada, a deputada Duda Salabert, que integra a CPMI, corrigiu Seif. Ela ressaltou que é professora de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira há mais de 20 anos e criticou o “negacionismo do dicionário” de bolsonaristas. “Olha o nível de negacionismo que nós estamos passando no Brasil. Se não bastasse negar a ciência, se não bastasse negar a vacina, se não bastasse negar a tentativa de golpe, agora estão negando ou querendo negar os vocábulos que compõem o dicionário da língua portuguesa”, disse.
Duda destacou que a palavra soldada existe sim. “Se as Forças Armadas optam por não utilizar, isso não quer dizer que essa palavra não tenha sido dicionarizada. Então, existe a palavra soldada e fica aqui a minha consideração”, completou. O senador catarinense não respondeu.
Pelo Volp, a palavra soldado não é comum de dois gêneros, registrando a flexão para “soldada” como substantivo feminino. As variantes sargenta, coronela, capitã e generala também são previstas no vocabulário, embora as Forças Armadas não usem as formas femininas. Já a palavra “tenenta” não existe mesmo e patentes como major e cabo não tem variante de gênero.
Questão é ideológica, opina linguista
A professora do curso de Letras da Univali e doutora em estudos linguísticos, Maryualê Malvessi Mittman, analisa que a questão é muito mais ideológica do que linguística. “Toda fala é carregada de ideologia, e a forma soldado e soldada não é diferente. Do ponto de vista gramatical, não há nenhum motivo pra se criticar forma, mas a gente tem que avaliar, do ponto de vista ideológico, porque essa forma incomodou tanto”, observa.
Ela acredita que o incômodo tenha sido porque, ideologicamente, a palavra soldada seria alguma afronta à tradição militar, que costuma usar as palavras no gênero masculino. “A tradição das Forças Armadas é uma tradição masculina, em que, por exemplo, as mulheres nem sempre puderam participar. Hoje as mulheres participam, mas elas não podem chegar às mesmas patentes que os homens, então ainda têm um tratamento diferente”, comenta.
Do ponto de vista da gramática, a professora ressalta que não há nada de errado com a palavra “soldada”. Ela explica que a forma está de acordo com as regras de formação e uso das palavras, fazendo parte de várias flexões no feminino, no caso para patentes militares, mas valendo também como para “presidenta”.
Maryualê lembra que as palavras nascem ou morrem conforme o uso e não dependem de estarem ou não nos dicionários pra serem consideradas apropriadas ou não. “A nossa Língua Portuguesa é uma língua que permite flexão de gênero. Então, se a gente tem o soldado, não há nenhum equívoco gramatical em dizer que nós podemos ter uma soldada”, conclui.