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A político do longe 


Anton era criador e comerciante de ovelhas. Viajava com a missão de negociar o esforço de seu trabalho. O rebanho era de duvidosa formação, resultado do alimento mal administrado, das disputas entre cordeiros, das dificuldades de aprendizado sobre limites. Algumas ovelhas fugiam a se aventurar nas noites de verão, mas logo voltavam e recebiam a revolta do criador. Enfrentavam as ameaças como flagelo a suportar para poder arrecadar momento de sorriso, mísera conquista fora do cercado.

As ovelhas de Anton se transformaram em seres nutridos por revoltas, sonhos de vinganças, a tentar alguma vantagem contra o autossofrimento. Dores mentais a transitar pelo sangue. Era desejo secreto, mas as ovelhas não poderiam abater seu criador.  Por ora não deixavam escapar nenhuma fresta de revanchismo. Tudo seguia as tramas do humor, do estado de espírito, da condição emocional dos ciclos psicológicos, estatuto da existência transitada e julgada em transtornos vividos.

Regularmente, Anton se sentava numa cadeira diante da rua, convocava os olhos a sentir os entretenimentos que percorriam, um tanto sem sentido, a vida a transitar diante de si. Já estava anoso, senil, sem brilho; poucas palavras lhe preenchiam a boca e raras condições lhe postavam algum sorriso. Não tinha amigos, ou parecia não os ter, porque apenas aniversariamente era procurado por pouca gente. Isso lhe causava mais retração pessoal e o dia em que fazia anos marcava um vazio. Com os sentimentos já adormecidos, não se afligia.

Das ovelhas esperava o reconhecimento de que ao menos tentara fazer com que se tornassem fortes e prodigiosas, seguras e verdadeiras, empáticas e, ao menos um pouco, solidárias. Na cadeira, com a cabeça erguida e de expressões sem fulgor, lamentava, solitariamente, seu fracasso e seu destino. Não entendia por que cada uma das ovelhas tomara sentidos tão dúbios de fé, irresolutos de trajetos. As ovelhas crescidas vendiam-se nos mercados e procuravam demonstrar sua força com discursos de altivez, honra, sabedoria, conquista.

Anton, a cada fim de tarde, voltava ao seu assento em frente à TV para, dia após dia, acompanhar o que os jornais traduziam dos dias após dias da vida lá fora. Neste dia, o senhor das mensagens incitava a eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Ouvira os discursos dos eleitos, os acenos de boa vontade, os ajustes partidários, as necessidades do povo, a educação necessária.

Anton sentiu-se mais vivo naquele mundo de rituais de exuberância, de decantação do poder. Logo, num ligeiro pensamento, considerou que nada mudaria, que a vida não teria vitalidade nos discursos dos eleitos. Enquanto um dos aferidos presidentes falava palavras sem sentido realista, passou-lhe pela pele um calafrio doentio a lhe recordar a cadeira, a rua, a passagem do nanico mundo que se movia em sua frente todos os dias com o testemunho irrevogável de sua cadeira. Anton, a cada dia, dia após dia, perdia a esperança nos políticos.

Anton, diante da rua, parecia esperar seu funeral passar, sem honrarias, como tragédia, como sossego. E os discursos presidenciais continuariam na TV. Anton adormeceu na cadeira e tudo ficou longe, separado de si.


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