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Sintomas
Dois dias de ventos fortes, sol intenso e um dos únicos resquícios de leveza está nos pássaros que se divertem nas correntes de ar mais altas. Os sintomas de um bicho preso começam a aparecer.
Nasci com esse sobrenome carrancudo e um tanto pretensioso, mas não tenho jeito para bicho acuado. Penso leve, dou risadas toda manhã quando vejo o sol na varanda e me agrado com os barulhos que o vento faz na janela. Mas nos últimos dias até música brega me faz lacrimejar e tenho tomado cuidado para não me irritar com o copo d’água entregue pela mão da companheira de vida. Bicho acuado.
Tem uma lenta correnteza atravessando os dias. Esse tempo que carrega, dia após dia, os resíduos do que fui e traz novidades no que começo a pensar sobre um tempo que ainda não sei como será. Tempo, cruel tempo, que alimenta nesse bicho acuado uma sensação de impotência. Dentro de mim tenho muitas ideias em silêncio. Bicho acuado.
Sabe aquela experiência rotineira, quando saímos de casa pra fazer algo? Lembra dela? Pois é. Para mim, escritor, ela é sempre inusitada. Sempre que saio, vejo pessoas com roupas ou comportamentos interessantes, ouço conversas que me inspiram textos novos, sinto o perfume que me faz imaginar a vida privada de quem o usa, me divirto com os modos de falar dessa cidade. Escuto o mundo com todas as suas multivariadas expressões.
Quando volto para casa, os móveis e a decoração continuam os mesmos, mas algo em mim foi alterado e meus sentidos dão outro sentido ao que vejo cotidianamente. Claro, nem sempre é assim mágico, mas quando o é...uaaau! A luz que entra me emociona, aquele quadro que ali está por anos passa a ter um detalhe que não havia percebido ainda e até mesmo a paisagem da janela foi transformada. Saudade de caminhar nas ruas da cidade onde moro! Bicho acuado.
Com o isolamento tenho que, necessariamente, ser um nômade sem sair do lugar e dar outros sentidos às paisagens que me são familiares. Desafio posto, bicho acuado. Consigo? Um suspiro grande vem aos pulmões. Como manter meu cérebro curioso sem sair do mesmo lugar?
Não tenho, claro, as respostas e escrevo hoje pedindo uma pitadinha de conversa. Viu meu email no indicativo do texto? Mande notícias e diga como está. Conte o que anda fazendo, criando, lendo, pensando. Mandem um conto escrito na quarentena, um poema, um desabafo.
Viu? Sintomas de bicho acuado. Precisa do outro para pulsar. Espero ansioso. Há vida do outro lado do texto, bem sei que tem sempre um modo singular de falar do mesmo tema.