Colunas


Baile do medo


(Publicado na Folha de S. Paulo no dia 15/09/15)

O medo é o principal ingrediente do caldo de desumanidade que alimenta a intolerância e produz tragédias que varrem com igual brutalidade campos de refugiados sírios e favelas cariocas.

Não trato dos temores ancestrais, heranças neandertais de instintos de sobrevivência. Refiro-me ao medo político, inculcado, fabricado pelas contradições sociais. Falo do pavor que, como escreveu Drummond, “nos dissimula e nos berça”, nos mantém “dançando o baile do medo”.

A produção do medo é essencial para definir os limites entre civilização e barbárie. É a partir dele que distinguimos cidadãos e aqueles que sequer serão tratados como humanos. Sobre os bárbaros intoleráveis, a violência é tolerada.

A origem da palavra bárbaro remonta à Grécia antiga. Ela surge da onomatopeia usada pelos gregos para se referir à sonoridade da língua daqueles que não compartilhavam a cultura helenística. Seria o que chamamos “blá-blá-blᔠincompreensível. Mas que é, na verdade, o que recusamos compreender.

Na Roma antiga, os bárbaros representavam o perigo à civilização. O medo justificava o ódio e legitimava a violência a quem não estava à altura dos valores romanos. É um processo histórico permanente. Para continuar à beira do Mediterrâneo, recorro à crise imigratória na Europa. É o pavor semeado contra aqueles que não reconhecemos como iguais, principalmente árabes e africanos, que coisifica tragédias e transforma em números as milhares de vidas engolidas por essa fronteira oceânica.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu que o medo é como uma neblina desumanizante. As pessoas não conhecem de fato o que temem, mas sabem de quais territórios ele vem, qual a sua religião, a cor de sua pele. A fotografia do garoto sírio Aylan Kurdi, 3, morto é um dos raros momentos em que esta neblina é dissipada. Ela personificou o invisível ao expor a dimensão humana do absurdo.

O Brasil tem seus mediterrâneos. Nossos imigrantes são aqueles meninos da periferia cujos rolezinhos não são tolerados na civilização do consumo. Aqueles adolescentes da favela impedidos de ir às praias cariocas pela polícia. Os bárbaros que amarramos em postes e linchamos. Os intoleráveis que desejamos eliminar.

Também temos nossos Aylans. Christian Andrade, 13, era um deles. Ele morreu ao ser baleado numa operação policial na favela de Manguinhos. O garoto estava ajudando uma idosa a se proteger quando foi atingido.

Christian também era inocente, mas o dito mundo civilizado não lamentou a tragédia. Ela permaneceu encoberta pela neblina que nos provoca não uma ilusão de ótica, e sim uma ilusão de ética. No baile do medo, dançamos ao ritmo da barbárie.

 


Conteúdo Patrocinado


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

ENQUETE

O que você acha da regulamentação dos ciclomotores?



Hoje nas bancas

Confira a capa de hoje
Folheie o jornal aqui ❯


Especiais

Bolsonaristas fazem campanha online contra PL de proteção infantil nas redes

PL 2628

Bolsonaristas fazem campanha online contra PL de proteção infantil nas redes

Executar suspeitos com ‘tiro nas costas’ é ‘legítima defesa preventiva’, diz MPF

Varginha

Executar suspeitos com ‘tiro nas costas’ é ‘legítima defesa preventiva’, diz MPF

Companheiros são maioria entre agressores de mulheres indígenas no MA

“Macho para quem?”

Companheiros são maioria entre agressores de mulheres indígenas no MA

Nova via de Belém que não nasceu com COP30

Avenida Liberdade

Nova via de Belém que não nasceu com COP30

Canal de youtuber foragido do 8 de janeiro passa na TV aberta no Brasil

8 DE JANEIRO

Canal de youtuber foragido do 8 de janeiro passa na TV aberta no Brasil



Colunistas

Republicanos tá fechado com o prefeito Robison

JotaCê

Republicanos tá fechado com o prefeito Robison

TCE quer padronizar normas de alargamento de praias em SC

Charge do Dia

TCE quer padronizar normas de alargamento de praias em SC

SOS sertão

Coluna Esplanada

SOS sertão

União Progressista foca na reeleição de Amin

Coluna Acontece SC

União Progressista foca na reeleição de Amin

Viver o momento

Via Streaming

Viver o momento




Blogs

Saúde no prato

Blog da Ale Françoise

Saúde no prato

Trabalho importante

Blog do JC

Trabalho importante

Santacosta inaugura

Blog da Jackie

Santacosta inaugura






Jornal Diarinho ©2025 - Todos os direitos reservados.