EFEITO COLATERAL
Apostas on line devastam renda e saúde mental de brasileiros
Febre dos jogos de apostas compromete renda do trabalhador e provoca explosão de casos de ansiedade e depressão
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Por Renata Rosa | Especial para o DIARINHO
Bastaram seis anos de legalização dos jogos de aposta online para o Brasil entrar em uma espiral desastrosa, que corrói o bolso e a saúde mental do trabalhador, além de afetar vários setores ...
 
Já possui cadastro? Faça seu login aqui.
OU
Quer continuar lendo essa e outras notícias na faixa?
Faça seu cadastro agora mesmo e tenha acesso a
10 notícias gratuitas por mês.
Bora ler todas as notícias e ainda compartilhar
as melhores matérias com sua família e amigos?
Bastaram seis anos de legalização dos jogos de aposta online para o Brasil entrar em uma espiral desastrosa, que corrói o bolso e a saúde mental do trabalhador, além de afetar vários setores da economia devido ao crescente endividamento. Nem a regulamentação prevista para 2025 deve ser suficiente para reduzir os efeitos da dependência nos jogos virtuais, que são comparáveis ao vício em crack por ativarem mecanismos de recompensa no cérebro.
As estatísticas sobre o volume de pessoas atingidas variam entre os institutos que pesquisam a capacidade de consumo do brasileiro, mas todas apontam para um poço sem fundo de evasão de divisas e falta de preparo para o uso de novas tecnologias aliadas ao pagamento com um clique.
A pesquisa CDL/SPC, divulgada em agosto, mostrou que 40 milhões de brasileiros haviam jogado nos últimos 12 meses. Destes, 63% fizeram apostas esportivas e os demais apostaram em jogos de azar, como roleta, caça-níquel e poker em cassinos online. Um quarto deles admite jogar mais do que pode, e 22% joga de duas a três vezes por semana, em média 2 horas por dia, sendo o Pix a modalidade de pagamento preferida (72%).
O dinheiro das apostas afeta o orçamento destinado a vestuário (18%) e lazer (16%). Quase 20% estão com o nome sujo e 15% estão inadimplentes. Foram entrevistados homens e mulheres a partir de 18 anos entre os dias 14 e 21 de junho.
Já o Instituto Locomotiva realizou pesquisa entre os dias 3 e 7 de agosto e apontou que o número de apostadores chega a 54 milhões, 25 milhões apenas no primeiro semestre, sendo 48% novos jogadores. Cerca de 79% deste público são formados pelas classes C, D e E, a maioria concentrada na faixa etária de 30 a 49 anos. O mais preocupante: 86% estão endividados e 64% negativados na Serasa.
Um estudo macroeconômico realizado pelo banco Itaú projetou um prejuízo anual de R$ 23,9 bilhões com jogos e apostas online. No último ano, os brasileiros apostaram R$ 68,2 bilhões e sacaram R$ 44,3 bilhões. O gasto é superior à exportação de carne bovina em 2023, que ultrapassou a casa dos R$ 50 milhões.
Estresse financeiro atinge 74% dos estudantes de Administração
As consequências negativas do uso indiscriminado de jogos online já começam a ser percebidas. O economista Crisanto Ribeiro, 60, especialista em gestão financeira, está produzindo um artigo científico baseado em pesquisa realizada com alunos da faculdade de Administração dos campi da Univali. A análise dos dados mostra que 74% deles sofrem de ansiedade financeira em virtude de baixos salários e crescente endividamento.
“O problema é que liberaram o jogo sem promover educação financeira. Os jovens são iludidos por ganhos irreais influenciados pelo mundo falso de sucesso das redes sociais, antes de aprender a administrar seus recursos e investir em instituições com mais credibilidade, como títulos do governo, que garantem rendimento 30% acima da poupança”, sugere.
Ele acredita que muitos jovens perderam a noção do mundo real e caíram no conto do dinheiro fácil, daí a necessidade de campanhas que alertem para as consequências da jogatina e desestimulem as apostas, da mesma forma que foi feito com o cigarro nos anos 90. Neste sentido, foi apresentado, este mês, um projeto de lei da deputada federal Gleisi Hoffman (PT/PR), que veta a publicidade de casas de apostas.
Se for aprovada, a lei chegará tarde para cerca de 35% dos jovens em idade universitária que adiaram os planos de ingressar na faculdade em 2024 devido ao endividamento com casas de apostas. A pesquisa foi realizada pelo Instituto Educa Insight, que entrevistou 10,8 mil jovens.
Lei que regulamenta as apostas prevê arrecadação de R$ 3,4 bi em impostos
No apagar das luzes de 2023, o presidente Lula sancionou a lei 14.790 que regulamenta as apostas depois de uma queda de braço entre o Congresso e o Senado. O texto aprovado no Senado previa a regulamentação apenas das apostas esportivas, mas o Congresso derrubou os vetos e incluiu todo tipo de jogo de azar, como jogo do bicho e cassinos online, com um placar de 261 a 120.
O texto prevê o pagamento de 2% de contribuição para a Seguridade Social, e os recursos serão divididos entre educação (1,82%), esporte (6,63%) e turismo (5%). A proposta estabelece a cobrança de 15% de Imposto de Renda sobre o valor líquido dos prêmios para a pessoa física. Já as empresas serão tributadas em 12% e pagarão R$ 30 milhões pelo direito de exploração de até três marcas por cinco anos. A expectativa de arrecadação anual é de R$ 3,4 bilhões.
Para o psiquiatra Leonardo Sodré, 44 anos, a arrecadação não vai compensar os gastos em saúde pública decorrentes da legalização dos jogos. Ele afirma que há um grande descaso com a saúde mental e sobrecarga dos profissionais do Programa Saúde da Família, sem falar no preconceito disseminado na sociedade. “Reduzir danos é sempre mais caro do que a prevenção. A quem interessa arrecadar impostos causando tanto dano à sociedade e alimentando a indústria da dependência?”, questiona.
Ele explica que o transtorno mental causado pela compulsão pelos jogos ativa a região pré-frontal do cérebro, ligada à impulsividade e à busca pelo prazer por meio da descarga de dopamina, um neurotransmissor que regula as emoções. Este desequilíbrio emocional, provocado pela expectativa do ganho e a frustração da perda, cria um círculo vicioso que compromete as relações pessoais e o desempenho no trabalho e nos estudos.
Jogadores têm mais recaídas pela facilidade de apostar on line
No grupo de Jogadores Anônimos de Florianópolis a demanda por jovens viciados em jogos de aposta online explodiu este ano. Uma das frequentadoras, que está há 15 anos tratando o vício em máquinas caça-níqueis, conta que comprou um celular em dezembro para atender aos jogadores em um grupo de WhatsApp e, desde então, recebeu mais de 200 pedidos de socorro.
“Tem mãe desesperada ligando, pai desesperado que paga agiota, tem filho engenheiro que vendeu o carro para pagar dívida e perdeu o emprego. Até senhoras que antes estavam viciadas em bingo, agora estão no jogo do Tigrinho. Tem enfermeiras, pessoas de todas as classes sociais e profissões que estão sofrendo”, conta.
Segundo ela, a nova leva de jogadores compulsivos tem entre 16 e 40 anos, e pelo fato de os jogos estarem ao alcance das mãos acabam tendo mais recaídas. Outra dificuldade é fazê-los participar dos encontros presenciais, já que muitos não admitem o problema e são levados pelos familiares. “Tem esposa controlando as chamadas do marido, trocando o smartphone por celular tipo tijolinho. É difícil, porque a família fica atrás policiando, mas o jogador tem que ter consciência de que está doente e precisa de ajuda”, enfatiza.
De aficionado por futebol à aversão aos jogos: a saga de um apostador
O representante comercial R.A., 41 anos, comemora dois meses sem apostar em sites de apostas esportivas, após perceber que tinha entrado numa barca furada ao formar um grupo no WhatsApp, composto por colegas de pelada.
Ele pagava um percentual de 10% ao gerente, que o convenceu a aumentar os ganhos caso tivesse a própria banca, já que teria algumas vantagens, como apostar após o primeiro tempo. O que ele não contava era que parte dos apostadores nunca conseguia honrar os compromissos no dia da prestação de contas.
Por ser aficionado por futebol, R.A. acreditava que seu conhecimento sobre times e campeonatos lhe garantiria uma renda extra. Para isso, instalou aplicativos de apostas que oferecem todo tipo de jogo, em campeonatos de todas as divisões do mundo.
No começo, apostava R$ 10 por dia, depois passou para R$ 20 e logo já eram R$ 50. Seu olho cresceu depois que conheceu um gerente de banca que afirmava ganhar R$ 20 mil mensais com clientes “top”, cooptados em estádios e aeroportos. “Ele me mostrou um brasileiro que mora fora e acerta todos os jogos, e me sugeriu apostar R$ 2 mil no mesmo jogo que ele. Fiquei com medo de apostar porque era tudo o que eu tinha para pagar a fatura do cartão de crédito. Só que ele ganhou mesmo, e eu me convenci a entrar no negócio”, relata.
No sábado, 14 de setembro, havia 1674 jogos disponíveis no site. Além de apostar no resultado, alguns sites oferecem a possibilidade de apostar no número de cartões amarelos e vermelhos, escanteios, pênaltis. Tantas opções provocaram o aumento exponencial de fraudes e operações policiais que investigam jogadores por manipulação de resultados em vários campeonatos estaduais e até estrelas da seleção brasileira, como Lucas Paquetá.
R.A. preferia apostar no resultado, e a última vez que jogou foi só para recuperar o que havia perdido. “E também porque estava ficando muito ansioso, passava o dia nervoso pensando nos jogos e nas apostas. Quase quebrei a TV e o celular durante as partidas. Já nem assistia por prazer, era só pelos resultados. Acabou com toda a vontade de assistir ao futebol”, lamenta.
Compulsão por jogos afeta cérebros em formação
“Até os 25 anos, o cérebro não está plenamente maduro e o contato precoce com este tipo de atividade acaba dificultando a capacidade de autocontrole e o planejamento financeiro”, afirma. Para o psiquiatra Leonardo Sodré, as grandes empresas de tecnologia usam conhecimentos da neurociência para criar ferramentas que estimulam o engajamento do usuário, como o rolamento infinito do Instagram. “Muitos chegam ao consultório com outros problemas, como depressão e ansiedade, e só durante o tratamento descobrem a compulsão digital.”
Em Itajaí, o atendimento é feito no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). O Caps 1 é destinado a crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes, inclusive os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas. O Caps 2 atende adultos com transtornos mentais graves, como tentativa de suicídio e crises psicóticas. Já o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) é voltado aos transtornos compulsivos. O Caps fica na rua Silva, 628, e funciona das 7h às 18h (infantojuvenil) e das 8h às 19h (adulto). Informações pelo telefone (47) 98864-1256.
A psicóloga Adrieli Corrêa, 35 anos, que gerencia a Integração e Saúde Mental de Itajaí, conta que está prevista a construção de uma terceira unidade do Caps 24 horas com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Além dos Caps, a saúde mental no município também é tratada no polo de psicologia infantil e adulto (casos de sofrimento leve a moderado). O encaminhamento é feito pelas Unidades Básicas de Saúde. Também há o setor de psiquiatria geral para tratamento de alto custo e uma unidade anexa ao CIS com equipe multiprofissional para casos de sofrimento mental moderado.
COMO PEDIR AJUDA
Por enquanto, em Santa Catarina, apenas a capital possui o grupo de apoio e as reuniões acontecem às terças, quintas e sábados. Informações pelo WhatsApp: (48) 99689-3359.