Matérias | Entrevistão


Rose Figueiredo

"O estupro é um dos maiores índices. A negligência, a violência infantil junto com a violência doméstica”

Fundadora da ONG Latarte

Franciele Marcon [fran@diarinho.com.br]

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A falta de orçamento do município de Camboriú para apoiar entidades beneficentes que acolhem menores em risco social pode deixar na mão cerca de 200 crianças, a maioria moradora do bairro Monte Alegre, conhecido pelos altos índices de violência e de pobreza. Desde 2006 o projeto Latarte recebe crianças de segunda a sexta-feira, durante os 12 meses do ano, em regime de contraturno escolar, realizando atividades lúdicas e educativas, amenizando os riscos de violência nas ruas. Só que neste ano, sem recursos, a entidade limitou o atendimento a 30 menores. Neste Entrevistão, a coordenadora do Latarte, Rose Figueiredo, contou à jornalista Franciele Marcon que a promessa do município não foi cumprida, explicou os serviços oferecidos pelo projeto e a alegria de encontrar os antigos alunos empreendendo, cursando faculdade e estando no caminho certo. Rose ainda revelou os motivos de sua exoneração do cargo de presidente da Fundação Cultural da cidade. Ela ainda pediu apoio do empresariado para ter recursos e voltar a dar esperança de um futuro melhor para as crianças do bairro Monte Alegre. Para ajudar o Latarte basta enviar mensagem para o WhatsApp (47) 3268-0165 ou entrar no site grupolatarte.com. A entrevista completa, em áudio e vídeo, você confere no portal DIARINHO.net e em nossas redes sociais. As imagens são de Fabrício Pitella.



 

DIARINHO – Houve um corte de verbas públicas que pode condenar o futuro do trabalho social de vocês. O que aconteceu?


Rose: O futuro da instituição está comprometido. Mais que o futuro da instituição, o comprometimento é com o futuro das crianças da cidade de Camboriú, mais especificamente do bairro Monte Alegre. Nós aguardávamos que abrisse um edital de concorrência do recurso do fundo da assistência social, para que outras instituições também pudessem participar. Nos foi garantido que esse edital seria aberto. Abrimos mão de participar do edital do Fundo da Infância e Adolescente, onde a instituição já tinha uma certa dificuldade de estar angariando recursos por conta do serviço que a instituição presta na comunidade. O serviço prestado pelo Latarte é considerado perene. A instituição atende aproximadamente 200, 210 crianças por dia, de segunda a sexta-feira. Cada criança é atendida 5 horas por dia. A gente tem inúmeras crianças, mais de 50 crianças estão na instituição há mais de 3, 5, 8 anos. Para que esse serviço seja prestado, a gente precisa de pelo menos R$ 18,25 por dia por criança. A criança é contemplada com almoço, café, jantar, material pedagógico, uniforme, todo o suporte para obtenção da média escolar. Isso tem um custo maior do que as outras instituições se propõem a executar pelo fundo da infância. Assim já ficava pesado pro Fundo da Infância e do Adolescente estar repassando para nós. E como 90% do nosso serviço é de convivência e fortalecimento de vínculo, ele é um serviço que tem que ser prestado pela assistência social. Por isso a gente entendeu, em conversa com o executivo, que deveria ser aberto um edital para que nós e outras instituições pudessem estar participando, como a AMA, a Apae. Três prazos oficiais foram dados para que esse edital fosse aberto e não ocorreu. Isso dificultou que as crianças, pela primeira vez em 16 anos de Latarte, voltassem na primeira semana de janeiro. [Qual é o entrave?] O comprometimento foi dado pelo executivo, em conversa com o próprio prefeito. Estava presente um representante da procuradoria, o secretário da assistência social. E não nos foi dito o porquê não foi aberto. As três datas dadas oficialmente, tanto em frente ao secretário quanto à comissão de mães e ao próprio presidente da câmara de vereadores, não foram cumpridas. Hoje a gente fica preocupado com essa negligência institucional, porque são famílias que realmente já tinham os seus direitos totalmente garantidos de permanecer num espaço consolidado e que apresentava bons resultados para a família, para a criança, em questão de segurança, educação, segurança alimentar também... [Essas crianças estão fora do contraturno. Como está a situação atual?] Com os recursos que nós tínhamos conseguimos ficar com as últimas 30 crianças que tiveram seus direitos violados e foram encaminhadas pelo Conselho Tutelar ou pela Vara da Infância.

 


"Só no ano de 2022 foram mais de 600 casos de violação de direito de crianças na cidade”

 

DIARINHO – Vocês também recebem apoio da iniciativa privada?

Rose: Nós temos algumas situações em que trabalhamos em conjunto com pessoas físicas, iniciativa privada, pessoas jurídicas. Também estamos aguardando o repasse do Fundo da Criança e do Adolescente do estado de Santa Catarina. Nós tivemos um projeto aprovado em agosto do ano passado para que pudéssemos atender prioritariamente, no mesmo formato que a gente já vem atendendo há 16 anos, 50 crianças com direitos violados. Esse projeto já está aprovado e a gente vai agora trabalhar com essas 50 crianças. Paralelo a isso, a gente tem a obrigação, o compromisso, de estar trazendo as outras 150 crianças de volta. Aqui entram as campanhas que estamos desenvolvendo, uma delas é o Apadrinhe. Estamos buscando que pessoas, empresas possam estar apadrinhando uma criança nesse valor de R$ 18,25 por dia.

DIARINHO – O Instituto Latarte surgiu em 2006 para atender crianças carentes de Camboriú no contraturno escolar e também vítimas da violência. Quantas crianças vocês já atenderam simultaneamente?


Rose: A instituição é buscada diariamente pela comunidade para que os filhos ingressem na instituição. Até 2017, a gente chegava a ter por ano em torno de 500 pessoas numa única fila de espera aguardando que uma criança saísse para que outra entrasse. A pandemia segurou. Mas a instituição também não parou no ano da pandemia. Desde 2006 a instituição já atendeu diretamente mais de 3 mil crianças, e foram mais de 40 mil pessoas atingidas indiretamente através dos programas e ações que a gente faz na Latarte.

 

"Mais que o futuro da instituição, o comprometimento é com o futuro das crianças da cidade de Camboriú, mais especificamente do Monte Alegre”

 

DIARINHO – Quais as atividades oferecidas? Como funciona a inscrição?


Rose: A maior parte das crianças acaba ingressando de forma espontânea. A comunidade conhece o trabalho oferecido pela instituição e busca matricular a criança. Outros encaminhamentos são feitos através do Conselho Tutelar, onde as crianças já tiveram os direitos violados. O Conselho Tutelar vê qual é a necessidade dessa criança ser atendida, se é pontual ou se é como o Latarte oferece, de segunda a sexta-feira, durante os 12 meses no ano, e encaminham os casos mais delicados ou que precisam de maior atenção para a instituição. Também pela Vara da Infância, quando precisa eles solicitam vaga. A gente atende de prontidão, fornece essas vagas. A instituição oferece como principal atividade: ajuda para obtenção da média escolar. Um dos principais objetivos da instituição é ingressar a criança numa universidade. Automaticamente no mercado de trabalho como mão de obra qualificada. Nós temos essa missão de projetar a criança sempre que ela entra na instituição, porque inicia com 4 anos e atendemos até os 17 anos. Quando a criança chega fazemos um cronograma individual e projetamos ela já pensando lá na universidade. A gente faz todo esse trabalho a longo prazo e oferece as atividades de cunho pedagógico, que é onde fortalece a criança. Eu sempre digo que podemos oferecer qualquer atividade diferenciada ou inovadora na instituição, mas algo que é especial, que temos como compromisso em oferecer, é o conhecimento. Isso com certeza ninguém nunca vai poder tirar da vida deles. [E a alegria de ver essas crianças no mercado de trabalho ou na faculdade?] O coração da gente se enche de alegria. Nós temos alunos nossos que hoje são empresários na cidade. Nós temos alunos que são pedagogos, advogados. Final de semana mesmo eu estive num comércio e encontrei três alunos meus trabalhando. A gente fica feliz que eles estão bem encaminhados, fazendo faculdade, trabalhando, ajudando em casa. Tendo uma vida promissora, no caminho certo, no caminho correto. No caminho que a gente busca idealizar para eles, que é ser feliz. A Latarte é isso: oportunizar novos caminhos.

DIARINHO – É comum muitos pais saírem pra trabalhar e os filhos ficarem sozinhos em casa. Vocês têm dados sobre esse problema em Camboriú?

Rose: Sim, inclusive em relação aos números de violação de direitos, só no ano de 2022 foram mais de 600 casos de violação de direito na cidade; 80 crianças já tiveram seus direitos violados em janeiro de 2023. E, com certeza, o bairro onde o Latarte está inserido é um dos maiores focos de violação de direitos da criança e adolescente. Por conta desses números tão crescentes e assustadores, o Latarte há 9 anos desenvolveu o Projeto Caminho Seguro. Porque nós tínhamos números que identificavam que quase 100% dos casos de violação de direitos aconteciam no período em que a criança transitava entre a escola e casa. No trajeto que ela saía de casa para ir para a escola ou que saía da escola e ia para casa, onde ela almoçava sozinha. As crianças desde muito pequenas acabam se virando. Elas eram abordadas pelo tráfico ou pela prostituição infantil. Quando não as questões de estupro por alguém próximo dela, que acabava ficando em casa naquele horário onde o pai ou a mãe iam trabalhar. É uma comunidade muito trabalhadora, onde cedo os pais saem de casa e as crianças acabam se virando. A gente tem alunos onde o irmão maior, de 8, 9 anos, acaba levando o menorzinho para a creche e dali ele vai para a escola. E quando a gente percebeu que era possível fazer alguma coisa, porque era um horário que a instituição ficava aberta, a gente só não tinha condição de ter um almoço. Nós buscamos uma parceria, uma estratégia para que resolvesse essa questão da violação dos direitos no trajeto, porque muitas crianças também nem iam para casa. A gente tá falando das crianças que iam. Mas tinham aquelas que ficavam, era natural, na pracinha, iam jogar bola no campinho, ficavam nas ruas. A gente conseguiu um parceiro, uma igreja de Balneário Camboriú que se propôs, junto com outros empresários, a patrocinar o almoço. Nós iniciamos o almoço, buscando as crianças na porta da escola, trazendo pro almoço na instituição, e ali elas ficando até 17h. Nunca mais teve casos de violação de direitos das nossas crianças naquele horário do meio-dia. É um dos projetos mais importantes da instituição. Inclusive nós participamos do Selo Social, onde fomos certificados por esse projeto e abrimos inclusive um painel de boas práticas da ODS com o projeto do Caminho Seguro.

 

“Um dos principais objetivos da instituição é ingressar a criança numa universidade”

 

DIARINHO – Quais os principais riscos às crianças de Camboriú: drogas, violência sexual, trabalho infantil? O que vocês vivenciam no dia a dia da infância da cidade?

Rose: O estupro é um dos maiores índices. A negligência, a violência infantil junto com a violência doméstica. É praticamente impossível que a mãe sofra violência e a criança não. Violência psicológica... Em Camboriú realmente o número é alarmante. Algo precisa ser feito. É preciso que se erga uma bandeira de combate a essa violência. Eu acredito que hoje, de verdade, que Camboriú esteja precisando inclusive da ajuda dos municípios vizinhos, porque é uma cidade com uma baixa arrecadação em comparação a outras. O nosso passivo, que são pessoas que dependem muito da área da assistência social, educação e saúde, sai mais do que entra em arrecadação. E tem dificultado que as políticas públicas aconteçam a ponto de sanar essas demandas e necessidades. É claro que a gente não pode pensar que a falta de arrecadação é uma justificativa para que não se desenvolvam mais programas e projetos que atendam essa demanda. Eu penso que hoje um trabalho articulado de iniciativa privada, toda rede do executivo, da prefeitura, em conjunto com as cidades vizinhas da Amfri, através, quem sabe, de um consórcio intermunicipal, a gente conseguisse de forma muito rápida sanar principalmente essa questão da violação dos direitos da criança e do adolescente da cidade de Camboriú.

 

“Algo que é especial, que temos como compromisso em oferecer, é o conhecimento. Isso com certeza ninguém nunca vai poder tirar da vida deles”

 

DIARINHO – Camboriú tem um R$ 1,4 milhão do Fundo da Infância e Adolescente para dividir entre 10 instituições filantrópicas da cidade. Esse valor é suficiente?

Rose: Não, com certeza não. Inclusive nós temos outras instituições sendo registradas na cidade, entrando com pedido de registro para também receber parte desse recurso e também estar desenvolvendo projetos. Esse R$ 1,45 milhão ele, no ano passado, pelo Latarte não ter participado, foi distribuído para oito instituições. Algumas ficaram de fora por falta de documentos que as habilitassem receber e outras estavam aguardando o registro. Mas para essa demanda toda que a gente tem na cidade não é suficiente. É claro que também existe a problemática que esse R$ 1,45 milhão não tem sido atualizado nos últimos anos, porque a própria lei sugere que o município coloque no fundo até 1% do recurso da arrecadação. A arrecadação, graças a Deus, melhorou, aumentou bastante, mas o fundo permaneceu estático. Ainda com esse aumento, uma previsão para que esse ano ultrapasse R$ 2 milhões, não é o suficiente pela quantidade de demanda que existe na cidade de Camboriú. Mas de novo: não é justificativa para que não seja feito. É preciso buscar novos parceiros. Temos visitado os municípios vizinhos e conversado com muitos empresários que se colocam à disposição para ser parte desse braço que o terceiro setor já tem sido para o poder público.

 

“As crianças desde muito pequenas acabam abordadas pelo tráfico ou pela prostituição infantil”

 

DIARINHO – A senhora já foi presidente da fundação cultural de Camboriú no governo Élcio Kuhn. Por que foi exonerada?

Rose: No ano de 2021 eu fiz parte do governo do atual prefeito, o doutor Élcio. Eu tive a honra de desenvolver um trabalho dentro da Fundação Cultural. Foram feitos vários projetos importantes, numa proporção bem interessante, através dos projetos de oficinas nos bairros. A gente conseguiu parcerias para que cada bairro tivesse um núcleo da fundação cultural. Foram mais de 1200 pessoas, 1200 munícipes que participaram fazendo o seu cadastro para ter acesso em todas as oficinas. Foi feito também um edital de cadastro de oficineiros para desenvolver essas atividades. Mas, infelizmente, por uma questão política, o próprio partido entendeu que eu não poderia mais estar fazendo parte do governo e pediu a minha exoneração imediata. Foi onde eu deixei o executivo em janeiro de 2022. [Houve um rompimento do PL com o MDB municipal?] Não houve um rompimento do PL com o MDB. Houve um rompimento do PL com a Rose. Foi um pedido para que a Rose não estivesse mais representando o PL no governo do MDB. [E você segue no PL?] Sigo no PL. Até porque o que me fez ir ao PL foi uma proposta de algo maior em benefício do município. Não sei se permaneço. Mas enquanto eu entender que eu ainda posso ser necessária no quadro político da cidade, sendo ou não candidata, eu vou permanecer. [A senhora vai concorrer ao cargo de prefeita na próxima eleição?] Neste momento, a minha maior prioridade é trazer as crianças do Latarte de volta. Hoje a minha política, a minha bandeira, é a criança e o adolescente. No ano que vem, vamos ver como o quadro se desenha.

 

“A instituição oferece como principal atividade: ajuda para obtenção da média escolar.”

 

DIARINHO – O projeto tem alguma ligação com grupos religiosos?

Rose: Não. O projeto é laico e apartidário. Nós temos parceiros de diferentes igrejas, diferentes igrejas nos procuram, igrejas e outras denominações, nos procuram para fazer doação de alimentos, de roupas, agora na Páscoa, de chocolate. Latarte conseguiu criar uma grande rede de parceiros e pessoas que entendem que a nossa bandeira é realmente a criança e o adolescente. O futuro da criança e do adolescente da cidade de Camboriú. A gente tem, sim, parceiros na Assembleia de Deus, na Igreja Luz da Vida, na Igreja Church, entidade Church, na Igreja Batista. Nós não rotulamos as pessoas e a gente gosta também que elas não nos vejam de uma forma isolada ou que a beneficie de alguma forma só por fazer parte da igreja dela ou não.

 

“Um dos principais objetivos da instituição é ingressar a criança numa universidade”

 

DIARINHO – E como surgiu o nome Latarte?

Rose: O nome é Lata com Arte. Em 2003 eu era regente do Coral Municipal de Camboriú. Após os horários de ensaios, a gente desenvolveu uma atividade rítmica, que na época era para ser uma fanfarra, mas nós não tínhamos instrumentos. Eu procurei algo próximo da gente que eram latas de tinta e cabos de vassoura cortados ao meio. Nossas crianças são maravilhosas, são muito talentosas. Era só para ser uma atividade rítmica do canto coral, mas elas conseguiram fazer música com aquelas latas. Dali para frente a gente só ampliou e se tornou um projeto social

 

 

Raio X

 

Nome: Rose Figueiredo

Idade: 45 anos

Natural: Camboriú

Estado civil: casada

Filhos: um

Formação: Direito (cursando)

Trajetória Profissional: Regente do Coral Municipal de Camboriú em 2003; Presidente da Fundação Cultural de Camboriú em 2021 e idealizadora, fundadora e coordenadora do projeto Latarte desde 2006.




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