Existir para resistir
1ª Virada Afro-Cultural revela uma Itajaí negra e multifacetada
Grupos de dança, música, poesia se revezaram no palco montado ao lado do lendário salão de baile Sebastião Lucas
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Por Renata Rosa
Especial para o DIARINHO
A maratona de expressões artísticas que movimentou o sábado no bairro da Vila foi só uma mostra do potencial de Itajaí para eventos multiculturais, que tanto atraem a atenção de locais e turistas em cidades ricas em diversidade humana, como São Paulo, onde o termo “virada cultural” foi criado. O evento, montado ao lado da Sociedade Sebastião Lucas, ficou pequeno para a quantidade de pessoas entusiasmadas com a ideia de verem ali reunidos talentos de tribos urbanas que não interagiam entre si, como a galera do hip hop, samba e imigrantes haitianos. Depois de 12 horas de festa, a pergunta era uma só: quando será a próxima?
“A receptividade foi muito além do que a gente tinha imaginado. Pensamos que seria apenas nós nas banquinhas e nas apresentações. Mas o público foi chegando, chegando e daqui não saiu mais”, comemora Ana Karolina Santos, 38, criadora dos brinquedos Aye Afro, e também integrante da comissão organizadora. Mãe de duas crianças negras, Ana conta que criou a grife pela falta de representatividade no mercado. Além de bonecas, ela trouxe quebra-cabeças temáticos e bonecos cadeirantes. Já as crianças do Instituto Sorrir, da Murta, arrancaram lágrimas ao entoar o clássico de Sandra de Sá, “Olhos Coloridos”, uma ode à cabeleira afro.
A estudante Amelie Carvalho Pimenta, 16, veio com a mãe de Nova Trento e exibia com orgulho as melenas recém trançadas. Filha de pai negro e mãe de origem italiana, ela conta que veio de São Paulo há quatro anos e sente muita falta de eventos deste tipo. “Cheguei aqui e me senti em casa. Infelizmente, em minha cidade o preconceito com afrodescendentes é bem forte. Mesmo sendo clara, sofri muito na escola, me chamavam de macaca, riam de mim. Demorei a me sentir bem em minha própria pele”, confidenciou.
Esta reafirmação da negritude estava por toda parte: nas roupas, penteados, modos de ser e conviver. Prova de que há uma demanda reprimida de eventos que contemplem esta parcela significativa da população.
A estilista Cris Medeiros, 48, neta de nordestinos e filha de Iemanjá, trouxe o colorido da chita para a virada. A escolha do tecido foi para valorizar o rústico material que adornou a casa dos escravizados. “Sou uma branca afrodescendente e absolutamente apaixonada pela luta do povo preto por inclusão e afirmação da identidade. Eu tenho um lema de vida que é assim: se vista de cor, flor e amor e seja o seu próprio jardim”.
Aliás, a Primeira Virada Afro-Cultural é o ponto de partida para uma luta que está só começando: a restauração da Sociedade Sebastião Lucas, criada em 1952 por trabalhadores portuários, que não podiam entrar no Salão da Vila, ali perto, frequentado pela elite branca. O prédio, tombado pelo patrimônio histórico em 2007, foi fechado pela Defesa Civil por questões de segurança. E sua destinação está agora nas mãos do Ministério Público.
“É preciso que a antiga diretoria seja destituída para a gestão do espaço fique a cargo das entidades que organizaram a virada para então restaurar”, disse o superintendente da Fundação Cultural de Itajaí, Normélio Weber. Ele acredita que eventos desse tipo são fundamentais para chamar a atenção da opinião pública para a necessidade de resgatar o espaço que historicamente foi ponto de encontro da negritude itajaiense. “O engajamento da sociedade civil é fundamental”. Não é à toa que o lema do grupo é “Existir para resistir”.
Sebastião Lucas pode virar Centro Cultural Afro
O historiador José Bento Rosa da Silva, que integra o grupo que luta pela revitalização do espaço, disse que a ideia é transformar o local em um Centro de Memória da Cultura Afro. “Muito além de um espaço de festa e confraternização, queremos que o Sebastião Lucas seja um local de organização social. Muito da documentação foi jogada no lixo por antigos locatários. Por isso a necessidade de resgatar a memória e ampliar as atividades, já que a comunidade afro só cresceu com a chegada de imigrantes haitianos e do Norte e Nordeste”. O historiador Moacir da Costa disse que pelo último levantamento, cerca de 15% da população se declara preto ou pardo na cidade, mas dependendo do bairro, este número pode ser bem maior.
A atual Rainha da Beleza Negra e cabelereira trancista, Alexsandra Jacinto, 28 anos, mora no bairro São João e disse que existem três salões especializados em penteados afro. Ela conta que é de uma geração em que os cabelos tinham que ser esticados ao máximo para não serem vistas como desleixadas. “Minha avó usava banha e pente quente para não deixar um fiozinho solto, além de ser um processo dolorido, nos ensinava que nossas características eram feias, indesejáveis. Hoje amo meus lábios grossos, meus cachos, meu nariz e passo isso para minha filha. Sou da época que exemplo de beleza era a paquita, imagina!”, relembra. Ela ainda sonha em voltar a frequentar o salão onde se divertiu tantas vezes. “Nós merecemos!”.
O jornalista André Pinheiro participou do sarau com os poemas “Travessia” e “Curapoesia”, sobre a diáspora do povo africano, trazido à força para ser escravizado nas Américas. E os desafios do passado e de hoje para enfrentar o que ele chama de pensamento colonial. “É uma mentalidade que segrega as pessoas de acordo com a etnia e gênero. Existe uma demarcação sociocultural que impede esses grupos de transitar por certos espaços”, afirma.
O filho do mestre de obras que ergueu o Sebastião Lucas, o arquiteto Paulo Rolando de Lima, disse que a cidade vivia um clima de verdadeiro apartheid e que o clube surgiu num esforço de preservar a humanidade e a tradição das pessoas pretas, que só poderia acontecer entre iguais. Ele contou que o pai, José Adil de Lima, também era líder sindical e teve que fugir nos anos 60 para o Paraná por causa de perseguição política no início da ditadura militar.
A gerente do Museu Histórico de Itajaí, Evelise Moraes Wiersinski, disse que resgatar o Sebastião Lucas é essencial para todos. “A cidade perde muito em complexidade quando privilegia uma etnia em detrimento de outras. A negritude faz parte de nós, portanto, merece ter o mesmo tratamento dado à cultura dos descendentes de europeus”, acredita. Um exemplo de patrimônio cultural imaterial foi tema da poesia declamada pela professora Carol Andrade, 38. “Qual é a cor da cor”, do maranhense JC Ramos, fazia parte do ritual de sua família durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário, realizada anualmente em Piçarras. Conhecida como “Natal dos Pretos”, o evento foi a forma que os escravizados encontraram para professar sua fé longe dos olhares discriminatórios e mesclando ritos afro e católico.
Imigrantes africanos e haitianos enriquecem repertório cultural
O contador aposentado e artista plástico João de Deus Peixoto Brito, 60, era adolescente quando deixou a terra natal, Angola, e cruzou o Atlântico com os pais e irmãos fugindo da guerra civil que assolava o país, após a luta de independência de Portugal. Foram 53 pessoas a bordo do barco pesqueiro, que trazia também cidadãos de Cabo Verde. Ao todo, a comunidade angolana e seus agregados formam uma comunidade de 200 pessoas. João é presidente da Associação dos Naturais e Amigos de Angola (Ananga). É de sua autoria as máscaras africanas que adornaram o evento.
“Acho que ninguém esperava a adesão da comunidade nesta virada e apesar do cansaço, foi muito gratificante ver esse povo abandonado ser valorizado e aplaudido. Será o primeiro de muitos”, garantiu. João de Deus lembra que maio é um mês muito importante não só por relembrar a abolição da escravatura e criação da Sociedade Sebastião Lucas, mas também por causa do dia 25/5, o Dia de África. “E Itajaí tem recebido africanos de outros países também, como Guiné Bissau e Senegal. Continuamos fazendo parte da formação do povo brasileiro”, destaca.
Outro momento de pura emoção foi a apresentação da banda Sons do Haiti formada pelos músicos Samuel Aubourg (teclado), Bedjina Isema e Reginald Saintilait (vocais), Gerald Berthomieux (bateria), Fanfan Le Bass (baixo), Oblancy Augustin e Rooby Augustin (percussão) e Zo Mizik (guitarra e trompete). Cantando em creole e em português, os jovens finalizaram a apresentação com uma declaração de amor à Itajaí.
O grupo foi formado graças à visão da produtora cultural Andréa Muller, 57, que buscava inspiração para colocar em prática o Espaço Cultural Beija-Flor. Andando de bicicleta pela cidade, ela ouviu entoarem hinos em uma igreja evangélica no Dom Bosco e foi conhecer os donos daquelas vozes angelicais. Durante a pandemia, ela teve que adiar os planos para dar suporte à comunidade haitiana. Felizmente o pior passou e ela pôde selecionar talentos e firmar parcerias com o poder público para que os músicos pudessem ensaiar na Casa de Cultura. Todo esse esforço pode ser conferido em outubro, quando vai rolar a 1ª Mostra Haiti de Cultura, que teve projeto aprovado na lei de incentivo municipal.