Itajaí
OS 300 ÍNDIOS DO MORRO DOS CAVALOS
Relato da luta dos guaranis de Santa Catarina na defesa de seu território
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Renan Antunes de Oliveira, publicado no www.diariodocentrodomundo.com.br Esta é a dramática história de uma índia que teve a mão cortada a faconaços. A brutal agressão aconteceu no feriado de Finados, em Santa Catarina, consequência da luta pela terra entre brancos e guaranis. O ataque foi um gesto nada sutil. O objetivo da barbárie é expulsar os guaranis da Terra Indígena do Morro dos Cavalos, onde 300 deles resistem às investidas. A vítima da hora, Ivete de Souza, 59 anos, fotografada num leito do Hospital Regional São José na noite dessa terça-feira, 21 de novembro. O que agora se sabe é que ela foi marcada para morrer porque é ninguém menos do que a matriarca dos guaranis da aldeia. Figura respeitadíssima e mãe da combativa cacica Eunice. Seu verdadeiro nome é Juxiká. Na língua deles significa “divindade das sementes” – Ivete é apenas o nome aportuguesado dela, assim registrado no boletim de ocorrência da polícia e no hospital. Juxiká é de poucas palavras. Sua voz é só um murmúrio, cada frase soa como um suspiro. Ela já estava na aldeia quando a encontrei na quinta-feira passada, 20 dias após o ataque. O coto da mão cortada estava enrolado em bandagens encardidas. Tinha os cabelos desgrenhados, vestia roupas surradas, o esmalte vermelho descascando das unhas da mão que lhe sobrou. Não foi fácil chegar ao esconderijo dela, só possível depois de negociações com lideranças guaranis em São Paulo. Aqui não posso descrever o local, porque os índios me pediram sigilo, por segurança – vai que quem a atacou queira terminar o serviço. Posso dizer que a sala era pobre, mas ampla e arejada, com um mapão na parede. A velha índia contou, sem alterar a voz, que não identificou quem queria seu mal. Descarta rixa com algum índio: “Minha vida era só carpir, plantar e cozinhar para a família”. A família pela qual ela lutava de enxada na mão é composta pela filha cacica, uma neta (filha de cacica) e uma bebê, bisneta, quatro gerações sob o mesmo teto. Olhando a big picture, e sabendo que Eunice é uma liderança guarani conhecida e respeitada internacionalmente, que nunca anda desprotegida, entende-se porque Juxiká se tornou alvo. Eunice dá entrevista com a mãe. Também por segurança, pede que fotos da filha e da bebê não sejam publicadas – posso atestar que a menina era linda, saudável e irrequieta, rolando pela casa num andador cor de rosa. A danadinha interrompeu a entrevista, várias vezes. O que não percebemos na primeira reportagem foi a verdadeira natureza e a dimensão do ataque, parcialmente escondido pela grande mídia. Notícias do conflito poderiam causar impacto negativo no turismo do Mercosul – os gringos que entram em Floripa não suspeitam do caldeirão de ódio e violência que é a paisagem idílica da janela do carro, o parque estadual da Serra do Tabuleiro, onde há décadas os 300 guaranis sobrevivem enfrentando um rosário de desigualdades. A tribo, da qual a maioria pensa que são só os vendedores de cestos bem do alto do Morro dos Cavalos, às margens da BR-101, é hostilizada pelos posseiros brancos que ocupam a terra deles. Os posseiros têm apoio de políticos locais, no Judiciário, Legislativo, Executivo dos três níveis e da imprensa – índio não lê jornal. Os fins de semana da tribo são de puro terror Nos findes os posseiros têm mais tempo livre e passeiam pela área, disparando para o alto, às vezes mandando bala no casebres da turma. Os relatos dos ataques são fartos, comprovados com queixas na polícia e na internet, mas pouca gente se importa – a bela e Santa Catarina é só divulga as qualidades boas de seu povo e a balada do verão. Sob o mesmo sol e nas mesmas praias, o inferno está reservado aos habitantes das terras guaranis. Não falo aqui de direitos ancestrais às terras. A área foi demarcada (em 2008) pelo Ministério da Justiça da Era Lula. Eis o documento: Portaria Declaratória 771, do Ministério de Justiça, declara de posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandéva a Terra Indígena Morro dos Cavalos, de aproximadamente 1988 hectares. (Fonte: site do MJ) Portanto, no papel, os 300 poderiam chamar de seu aquele cantinho. E viver ali para pescar e colher goiabas. Estava tudo pronto praquele amaldiçoado presidente assinar a homologação da área e despejar ajuda federal nela, quando os posseiros, organizados por prefeitos da região, foram ao STF contestando a medida. O STF levou oito anos para decidir que os índios tinham razão. Não adiantou: quando os posseiros perderam, foi a vez do governador Raimundo Colombo (PFL/DEM/PSD) entrar no tapetão. Eis outro documento: “O Estado de Santa Catarina pediu a anulação da demarcação da terra indígena no Morro dos Cavalos, em Palhoça, na Grande Florianópolis. Para isso, a Procuradoria Geral do Estado protocolou no STF solicitação para tornar sem efeito a Portaria Nº 771, do MJ. O governo pede mais: se perder a terra, que ao menos o STF afaste os índios do leito da BR 101” (Fonte: site da PGE/SC) Protocolar no STF é jogar o caso para as calendas. E o novo pedido veio com uma barganha que os posseiros não pensaram: se os ministros mantiverem a decisão de que a terra é dos guaranis, que pelo menos eles (os índios, não os ministros) sejam chutados do alto do Morro dos Cavalos, para que se possa dar uma reformada na BR 101. FALTOU UMA CANETADA Dilma teve uma chance para desafiar tudo e assinar a homologação. Os índios mais espertos perceberam que ela ia cair e foram ao palácio. Um dia antes do impeachement imploraram por um canetaço dela – mas ela não teve, digamos, bolas para tanto. Estava tão siderada com o golpe que deixou os índios se virarem sozinhos. Aí, caiu na mão de quem para assinar o decreto de homologação da área indígena ? Dele, Michel Temer. Quem conhece o tema garante que ele só assinará uma homologação destas no dia em que as galinhas criarem dentes. Mais: foi já na gestão dele que os brancos ganharam a última escaramuça, apertando o torniquete nos índios. A ajuda do mal foi dada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão do Ministério da Agricultura. Ela cortou a cesta básica que durante anos pingava na tribo. Chega a ser provocação: o site da empresa mostra que entre suas tarefas está “a distribuição de cestas de alimentos, compostas por 22kg de produtos da linha básica de consumo, destinadas à suplementação alimentar de segmentos da população em situação de vulnerabilidade social, tais como comunidades indígenas” – mas, neca pros guaranis do Morro dos Cavalos. TOMARAM A TERRA, QUEREM A ÁGUA Como é a terra disputada? O naco dos guaranis tinha tudo para ser um pedaço do paraíso dentro do paraíso que são os 84 mil hectares do parque estadual da Serra do Tabuleiro (1% do território catarinense). Os guaranis ocupam menos de um 1% deste 1 %, mas mesmo assim incomodam. Os melhores mananciais de água limpa nascem nas terras deles – e os brancos a bebem lá embaixo. Os 300 que vivem lá dentro dominam as terras entre os rios Maciambu e do Brito, mas 70 famílias de brancos estão enraizadas no meio deles – uns passam pelos outros de olho arregalado. No ponto mais alto, as terras indígenas cortam a rodovia vital dos catarinenses, aquela que traz ondas de gaúchos e argentinos para o turismo. Ninguém entra em Floripa vindo do sul sem passar pela terra deles. Também é dos guaranis uma das praias mais lindas do litoral catarinense, a Enseada do Brito, com uma vista monumental do continente - do outro lado está Floripa, dá para ir nadando. Para sobreviver, tudo o que os índios fazem nelas, além de suas roças de mandioca, é explorar a venda de bugigangas, cestas de palha e caldo de cana – os posseiros têm negócios variados: postos de combustível, borracharias e puteiros. A cocoruto do morro e o conflito pelas obras da 101 são a parte visível, sempre com os índios pintando nas páginas da maioria dos jornais como inimigos do progresso. Os índios resistem com um estande de vendas de souvenirs pros viajantes na passagem do morro porque sabem que se forem varridos do alto, serão varridos do parque – já dá para imaginar bandeirantes modernos nos grotões caçando para deportação aos últimos vendedores de caldo de cana. A luta continua, sem noção: hoje, as lideranças indígenas fazem periódicas peregrinações ao Planato para pedir ao ministro Eliseu Padilha que encaminhe o decreto de homologação para assinatura do presidente Temer – seria o dia das galinhas dentuças. Depois da judicialização do caso pelo governo de SC, o governo federal se sente confortável para deixar o caso pras calendas – tanto que ele continua dormindo no STF. Os índios e o as autoridades já tinham acertado até como fazer para preservar os cocorutos do Morro dos Cavalos pra BR 101 – o DNIT deveria fazer túneis, projeto pronto. No ano passado, o TCU vetou os túneis e reabriu a ferida de passar pela terra indígena sem se importar com os vendedores de souvenirs. Semanas atrás um grupo de políticos e empresários de Palhoça foi a Brasília pedir ao mesmo Eliseu Padilha que interceda em favor da expulsão dos índios – neste caso, é bom levar a galinha para ser examinada no dentista porque aí sim ela pode criar dentes. VERSÃO OFICIAL DO ATAQUE É FANTASIA Moradores locais se disseram horrorizados com o acontecido. Eles oferecem os suspeitos de sempre: lideranças indígenas adversárias da cacica Eunice, a mesma versão oficial do ataque. O que nos leva de novo à cena do crime: Juxiká tava sozinha em seu casebre quando dois adolescentes (hoje detidos, com identidades preservadas de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente) a atraíram a uma casa vizinha. Lá dentro havia um homem, adulto, com um facão, pronto pra suprema covardia: bater até a morte numa velhinha de 1m52, desprevenida: “Eu senti o primeiro gole na cabeça e o sangue escorrendo”, lembra Juxiká, estoica, sem derrubar nenhuma lágrima. Não foi possível apurar mais detalhes do ataque porque ela disse que perdeu a visão com o sangue nos olhos: “Senti tudo, mas não entendi direito e só me defendi” - bem provável que se o cara deu o primeiro faconaço na cabeça dela queria mesmo era matá-la. Sem especulações: dona Juxiká não perdeu a consciência, tentou se defender com os braços, recebeu mais golpes pelo corpo, sangrou muito e teve a mão esquerda decepada. Caída numa poça de sangue, a “divindade das sementes” foi deixada para morrer. É provável que o atacante tenha achado que o serviço estava pronto e sumiu, deixando-a pronta pra semear os sete palmos. Como vai a investigação da polícia Civil? Lembremos que seu governo quer a saída dos índios do pedaço. Na delegacia da Mulher de Palhoça, os agentes não dão prioridade ao caso. Eles espalham um boato, pedindo para que nada seja publicado antes do final das investigações: o atacante seria outra liderança indígena, um tal cacique Luiz. E deram uma dica ao repórter: “Procure por ele nos mesmos morros, mais para cima, num trecho perto dos garapuvus, foi visto próximo de uma roça de melancias”– eu é que não sou bobo de procurar cacique de roça de melancias, pelo que eu sei a fruta dá no plano. A cacique Eunice repudia as versões genéricas: “Cada vez que um dos nossos é atacado, as pessoas pensam em desistir e mudar-se, é isto que os atacantes querem. Está óbvio que não são indígenas, nosso povo está unido. É coisa deles” – com “deles” em língua em guarani e em português, quer dizer gente de fora da aldeia, brancos. Os 300 guaranis do Morro dos Cavalos não fazem aquelas cenas de se pintar para guerra ou usar arco e flecha na frente das câmeras. Para resistir às provocações, todos os findes, e durante a noite, a hora mais temida, os guaranis, já acostumados com os sustos, se reúnem em vigília, em locais protegidos. As crianças enroladas em cobertores, os cachorros soltos, pra avisar qualquer coisa. Os guerreiros ficam no smartphone, as mulheres vendo TV. As famílias cozinham pinhão e mandioca. Muitos passam a noite em claro, de cuia na mão, tomando chimarrão. INDIOZINHOS EXIBIDOS EM ESCOLAS Um historiador local defende a tese de que não havia guaranis no pedaço “antes das ONGs” (defensoras dos índios) dizerem que eles estavam lá por séculos – conforme laudo antropológico da área, aceito pelo MJ. Ele tem sua própria tese da ocupação indígena. Disse que ouviu falar que uma família de sobrenome Moreira teria acampado no Morro dos Cavalos nos anos 60, durante a construção da 101, daí se originando o que hoje é o grupo estimado em 300 resistentes escondidos naqueles grotões. O historiador disse que não tem nada contra os índios. Contou que até levou algumas crianças indígenas para exibi-las aos seus alunos, no tempo em que lecionava nas escolas da região. Ele defende a permanência dos brancos posseiros no pedaço porque “são famílias que estão aqui desde o tempo dos açorianos”, os colonizadores da vizinha Floripa. Ele explicou também que a água consumida nas casas dos moradores brancos que ocuparam a Enseada vem toda da terra indígena, através de mangueiras que captam no alto do morro: “Vamos deixar toda água com os índios”? pergunta, assustado. Uma moradora sustenta que os índios chegaram mais tarde ainda do que a tal família Moreira. Na versão dela teria sido em 1992. Ela aposta numa vitória do governo de Santa Catarina para despejar a indiarada. De lambuja, não quer ter sua foto publicada no DCM – desejo aceito. A moradora tem a tese líquida de que a tribo entrincheira no morro não tem guaranis legítimos: “Onde você viu guaranis que tomam chimarrão”? Alouuu moradora, uma rápida info na web sobre a Ilex paraguairiensis: diz a história que foram os guaranis que descobriram o uso da erva-mate, passando o conhecimento aos espanhóis. Ou seja, quando os brancos chegaram na América os guaranis já tomavam aquela beberagem.