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Fotos: Lucas Correia
Uma cadeira de praia servia como cama improvisada para Vera Lucia Zanette, 42 anos, que dormia quando o DIARINHO chegou ao colégio Victor Meirelles, no centro de Itajaí, na noite de domingo. Ela estava lá desde as 7h de sábado e foi a primeira a chegar. A chefe do setor de frios do supermercado Xande integra uma lista de mais de 100 famílias que passaram duas noites na porta da escola para tentar garantir uma vaga para os filhos na rede estadual de ensino. O Victor Meirelles é o mais procurado, mas pelo menos três unidades peixeiras concentravam pais desesperados acampados horas a fio até que as matrículas iniciassem na segunda-feira pela manhã.
Com a ajuda da mãe de 63 anos no revezamento, dona Vera manteve-se firme e forte na fila durante duas noites. Ela quer matricular o filho de 14 anos que vai se formar na 8ª série na escola do Ariribá, bairro onde moram, no 1º ano do ensino médio. Para a sorte dela e das outras famílias, a direção da escola abriu os portões às 18h de sábado, e todo o mundo pode se abrigar dentro do colégio.
Os primeiros a chegar bolaram uma lista de presença com o nome dos futuros alunos, para não correrem o risco de perder o lugar. Enquanto isso, o jeito era esperar. Com uma mochila de mantimentos, um travesseiro e um cobertor fofinho, Vera tentava tirar uma soneca, mas admitia que dormir ia ser impossível. O que é sofrido é essa situação. Eles [direção da escola] avisaram que aqui era disputado pra conseguir uma vaga, mas a gente tem que fazer esse sacrifício pra ver os filhos estudando, afirma.
Durante a noite de domingo e madrugada de segunda-feira, o DIARINHO percorreu oito colégios estaduais de Itajaí. Em quatro deles havia pessoas em situação parecida. O perrengue rola há anos, toda vez em que as matrículas abrem. Neste ano, cerca de 1200 alunos se formam no ensino fundamental nas escolas municipais de Itajaí. No ano que vem, eles entram no 1o ano do ensino médio, que é oferecido pelo estado. O problema é que a maioria prefere as escolas centrais e o período da manhã, porém as vagas disponíveis não são suficientes para atender a demanda.
E quem quer garantir uma vaga, tem que ir pra fila e aguardar a vez. No colégio Victor Meirelles, são 190 vagas para o 1º ano, sendo 60 para o período matutino e 130 pra tarde. Até as 23h de domingo, a lista já contabilizava 109 pessoas.
Uma delas era Teresinha Ferreira de Souza, 52. Apesar do cansaço, o clima era de cooperação entre as famílias. Cada um levava o que podia pra deixar as horas de espera mais confortáveis. Foi o que fez dona Teresinha. Ela chegou às 11h de sábado pra garantir uma vaga pra filha de 13 anos, mas assim que os portões abriram, deu um jeitinho de buscar uma televisão pra assistir as novelas. Todos sentaram virados pro aparelho, pois com a distração da TV, as horas pareciam passar mais rápido. Moradora do bairro Dom Bosco, Teresinha escolheu o Victor Meirelles porque, segundo ela, é um dos melhores colégios públicos da cidade, mas passar dois dias numa fila pra garantir algo que é direito de toda criança e adolescente revoltava as famílias. Ficar 48h numa fila é um absurdo, mas vou fazer o que? Tem que ficar. Ainda que tá tranquilo aqui e não teve confusão, conta.
Pra passar o tempo, cada um inventou algo pra fazer. Quem conseguia, dormia num canto, numa cadeira, no chão ou nos bancos da escola. Quem não tinha jeito de fechar os olhos aproveitava pra ler um livro, conversar, assistir TV, jogar dominó, fazer crochê. Sem tirar o sorriso do rosto, Jaqueline Dutra, 48, manuseava a agulha de crochê com desenvoltura e tranquilidade. Ela e a filha de 14 anos estavam na fila desde as 13h de domingo. Não pôde ir antes porque estava trabalhando como vigilante numa serralheria no Rio do Meio, onde mora. Sentada num banco da escola, Jaqueline narrava o sacrifício sem perder o humor. Se é pra conseguir uma vaga pra minha filha, tenho que aguentar, diz, com a esperança de voltar pra casa com a filha matriculada.
Na manhã de segunda-feira foram distribuídas senhas pro pessoal que esperava, pra que eles pudessem voltar para a casa e providenciar a documentação. Essa foi uma alternativa encontrada, já que os funcionários não iam dar conta de fazer mais de 100 matrículas num dia só. Ao todo 80 alunos conseguiram fazer a matrícula ainda ontem.
Debaixo de sol, sereno e sem banheiro
O segundo colégio mais procurado é o Professor Henrique da Silva Fontes, no bairro São João. Na madrugada de domingo pra segunda, a fila chegou a dobrar na esquina entre a rua Doutor Pedro Rangel e a pracinha da igreja São João Batista. Lá o pessoal não teve o mesmo arrego que no Victor Meirelles. Todo mundo ficou na calçada, do lado de fora, porque os portões não foram abertos. Sem acesso ao banheiro e sem segurança, o jeito foi improvisar um cantinho para se abrigar. Ao longo da calçada, havia gente dormindo em cadeiras de praia, no chão ou dentro dos carros estacionados na rua. Tudo para garantir uma das 210 vagas disponíveis.
Marlene Capistrano, 53, era a terceira da fila e não conseguia esconder a canseira. Ela e a irmã Maria Rodrigues, 57, estavam desde as 13h de domingo esperando, junto com mais de 100 famílias. Quem podia, montava uma tenda para se proteger. Quem não tinha, ficava debaixo do sol e do sereno.
Marlene mora no bairro São Vicente e escolheu o Henrique da Silva Fontes porque é o colégio mais perto de casa, por isso a filha de 14 anos não vai precisar pegar ônibus. Também nessa escola a preferência é pelo horário da manhã. Minha filha faz curso à tarde, justifica a aposentada. Das 210 vagas, 120 são para este período, e 90 pra tarde.
Esperar na fila durante a noite toda não parecia ser o maior problema, se não fosse o descaso e a falta de apoio da própria escola. É um absurdo isto aqui. Há pessoas com mais idade que têm de ficar na rua, dormir na calçada, tasca Marlene. Como a escola estava fechada, também não havia acesso ao banheiro. O jeito foi usar a única lanchonete perto pra dar aquela aliviada. Mesmo assim, a gente tem que comprar qualquer coisa pra poder usar o banheiro, conta. À noite, o estabelecimento fechou e até a segunda-feira de manhã cada um teve que dar um jeitinho pra tirar água do joelho.
Na opinião do publicitário Alexandre Angioletti, 50, o Estado não está preparado para dar conta dos alunos que estão saindo do ensino fundamental. Só na escola da minha filha, 140 vão se formar e aqui tem apenas 120 vagas pra de manhã, conta. Para garantir o lugar dela, Alexandre e a mulher foram pra fila às 16h de domingo. Eu queria saber onde está o estatuto da criança e do adolescente. Se deixar de matricular minha filha, o conselho tutelar vem pra cima, mas cadê as vagas pra todo mundo?, questiona irritado.
Na manhã de segunda-feira, todas as 120 vagas para o período matutino já tinham sido preenchidas. Nos demais períodos, ainda havia possibilidade de matrícula.
Faltam salas para atender a demanda
Em Itajaí, as 15 escolas estaduais oferecem para o próximo ano letivo de 15 a 20 mil vagas para todas as séries. A informação é da gerente de Educação da secretaria de Desenvolvimento Regional (SDR), Isabel Belizário. Segundo ela, há vagas, que até estão sobrando. O que acontece é que há muita preferência pelas escolas centrais e ainda pelo turno da manhã. Não temos como agradar a todos. Por isso, aqueles que desejam certa vaga vão bem cedo, mas não pode ser só o que os pais querem, diz.
Pra Isabel, a única saída seria a ampliação das escolas com mais salas, para suportar um número maior de alunos no período da manhã. Ela diz que, para o próximo ano, está sendo estudada uma forma para evitar que os pais precisem passar a madruga na fila. Mas até agora não há nada definido.
A coordenadora do sindicato dos professores da rede estadual de ensino (Sinte/SC), Maria Goretti da Silva Pahl, diz que a escolha pelos colégios centrais se dá por conta da facilidade de acesso. Ou seja, a maioria dos ônibus passa pelo centro, o que torna mais fácil e prático para as famílias que necessitam de transporte público. Mas o problema maior é a falta de salas de aula e a falta de estrutura em todas as escolas. Era preciso um olhar do governo do estado pra construir mais escolas e ampliar as salas para que se pudesse atender a demanda, afirma.
Saiba como fazer a matrícula
As inscrições para o ensino fundamental, médio, educação profissionalizante e educação de jovens e adultos (EJA) da rede estadual seguem até 1º de novembro. Para fazer a matrícula, é necessário apresentar a certidão de nascimento ou identidade, duas fotos 3x4 e o comprovante de vacinação diretamente nas escolas.
Para o ensino fundamental, a criança deve estar com seis anos completos até 31 de março, embora uma solicitação dos pais possa flexibilizar o ingresso dos pequenos. Quem não conseguir se matricular neste período, vai ter uma nova chance entre os dias 3 e 7 de fevereiro. As aulas começam em 13 de fevereiro e terminam em 19 de dezembro.
Filas nas outras escolas foi um pouco menor
As maiores filas foram observadas nesses dois colégios, mas o DIARINHO presenciou famílias acampadas em mais duas escolas peixeiras. No colégio Deputado Nilton Kucker, na Vila Operária, 20 pessoas aguardavam pela abertura da escola desde as 19h30 de domingo. No ano passado, o número chegou a 80 pessoas. O funcionário da Farmais, Pedro Nicolau dos Santos, 45, acredita que a procura diminuiu por causa do aumento no número de vagas. Para o próximo ano são 173 para o período matutino e 160 para vo vespertino.
Na escola Professor Henrique Midon, no bairro São João, cerca de 20 pessoas aguardavam na calçada em frente à escola, na rua José Pereira Liberato. Apesar do número reduzido de pais, a ajudante de produção da Camil, Nilza Fátima Ferreira de Souza, 38, não quis arriscar. No ano passado, ela deixou para a última hora e não conseguiu matricular o filho de 13 anos na oitava série do ensino fundamental. Por isso, desta vez chegou às 21h de domingo e não arredou o pé de lá até matricular o garoto.
Janaina dos Santos, 28, também tava na fila. A supervisora de caixa do mercado Amorin conseguiu uma folga para passar a noite em frente ao colégio, tudo pra conseguir uma vaga para o filho de seis anos, que vai pra 1ª série do ensino fundamental. A criança ficou na casa da avó. Na fila, a maioria precisava da vaga para o ensino fundamental, que eram limitadas a 25 pro 1º ano. Todos aqui trabalhamos e tivemos que pedir folga ou faltar para garantir uma vaga. E ainda não temos nenhuma estrutura, como banheiro, para que possamos passar a noite, tasca.
Houve registro de fila no colégio Dom Afonso Niehues, em Cordeiros. Nas escolas Nereu Ramos, no bairro Fazenda, Professor Pedro Paulo Philippi, no centro, Ary Mascarenhas Passos, no São Vicente, e Paulo Bauer, no São João, não havia filas.
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