A foto tirada pelos próprios militares [e resgatada na década de 90, na comissão da Anistia criada pelo governo FHC] é apenas um dos vários indícios de que o ex-prefeito de Balneário Camboriú, Higino João Pio, preso pelos militares numa quarta-feira de cinzas, no dia 3 de março de 1969, foi torturado e brutalmente assassinado pelos carrascos da ditadura.
Higino foi levado à escola dos Aprendizes da Marinha, em Florianópolis, onde ficou 11 dias preso até ser morto. O corpo foi encaminhado como se fosse de um indigente para o necrotério da universidade Federal de Santa Catarina, dificultando ainda mais a situação da família.
Segundo os documentos levantados pelo grupo de estudos, que tem autorização legal, publicada em diário oficial, para dar suporte à Comissão da Verdade criada para elucidar os casos de torturas, mortes e desaparecimentos de pessoas durante os anos de chumbo o corpo foi entregue à família num caixão lacrado, com policiais acompanhando todo o velório para garantir que ninguém veria as marcas da tortura. O sepultamento ocorreu em Itajaí.
O grupo de estudos recolheu documentos, fotografias e depoimentos de várias testemunhas que refutam a versão de suicídio dos militares. Um dos mais importantes é o de um médico que examinou Higino no hospital da Marinha um dia antes de sua morte, verificando vários sinais de tortura.
O ex-prefeito era amigo íntimo do ex-presidente João Goulart, deposto em 1964 pelos militares, era prefeito em exercício em oposição ao grupo político que mais tarde formaria a Aliança Renovadora Nacional (Arena), base de sustentação do regime militar.
Desde a década de 90 o estado reconheceu que se tratava de um crime cometido pelos militares contra um adversário político, tanto é que a família recebeu uma indenização em dinheiro. Mas na certidão de óbito do vice-prefeito ainda consta que a causa da morte foi suicídio.
A morte de Higino aconteceu seis anos antes do suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog, que também morreu nas mãos dos militares em São Paulo. Segundo os estudos da comissão, o ex-prefeito foi um dos primeiros casos de tortura seguida de morte fora do eixo Rio-São Paulo nos porões da ditadura. A diferença para o Herzog é que na foto ele está de costas, com a cabeça encostada na parede, conta Inácio.
Marinha tem dificultado o trabalho
Passados mais de 40 anos da morte de Higino, parece que ainda tem gente querendo esconder alguma coisa. O professor Inácio faz questão de salientar que a Marinha se nega a colaborar com os peritos, pois não entrega os documentos solicitados ou mesmo permite o acesso ao local onde aconteceu o suposto suicídio. Existe uma lei federal que prevê pena de desobediência para quem se negar a colaborar com a Comissão da Verdade. No entanto, eles não deixam o nosso grupo entrar no local onde ele foi preso e assassinado, conta o professor Nildo Inácio, que estuda o caso do ex-prefeito há mais de três anos, juntamente com um professor de história e outro de filosofia da Furb.
A situação pode ficar pior durante esta semana, com a chegada de dois peritos da Comissão da Verdade que devem vir de Brasília para Florianópolis, exclusivamente para colher informações sobre o caso. A previsão é que seja concluído o relatório sobre a morte do ex-prefeito Higino até março do ano que vem, quando o prazo para a conclusão das investigações se encerra.
Segundo Inácio, a falta de colaboração da Marinha pode até ser levada para a justiça. Se for necessário, teremos que pedir a autorização de um juiz pra ter acesso, completa.
A reportagem tentou ouvir a oficial de Relações Públicas da Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, em Florianópolis, mas ontem só teve expediente até o meio-dia em função da formatura de uma turma de oficiais.
Família espera uma resposta
Sobrinho de Higino, o deputado estadual Dado Cherem (PSDB) conta que na última quinta-feira a família se reuniu com o grupo de estudos da Furb para repassar documentos e fotografias do acervo de Júlio César Pio, filho mais novo do ex-prefeito. Essa história tem que ser recontada. Quem observar as fotos que tivemos acesso não tem dúvidas do que de fato aconteceu, considera o parlamentar.
Dado era pequerrucho quando o tio foi assassinado, pois tinha apenas 11 anos. Mas ele se lembra que houve uma orientação para que ninguém fizesse qualquer tipo de manifestação durante o dia do velório, sob ameaça de que outras pessoas poderiam ser levadas a Florianópolis para serem submetidas à mesma violência.
O deputado não tem conhecimento sobre como tem sido a colaboração da Marinha com relação às investigações, mas acredita que medidas devem ser tomadas para que a história venha à tona o quanto antes, com a possível identificação dos carrascos. Foi o único catarinense morto em solo catarinense. Isso é muito sério, conclui.