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Oscar Niemeyer, autodefinição


Foi o meu editor e compadre Ênio Silveira que, na década de 1970, me apresentou a Oscar Niemeyer. Durante a Eco-92, no Rio, o arquiteto me disse que teria prazer em receber Fidel Castro no seu escritório, na avenida Atlântica, para um encontro com formadores de opinião.

Na noite de domingo, 14 de junho, acompanhei o presidente de Cuba ao encontro. O anfitrião nos aguardava à porta. Subimos pelo velho elevador de grade sanfonada. Casa de ferreiro, espeto de pau. O mais famoso arquiteto brasileiro mantinha seu escritório num antigo prédio cujos elevadores funcionavam precariamente.

Cerca de 40 intelectuais e artistas ali se encontravam, entre eles Darcy Ribeiro, Ênio Silveira, Moacyr Werneck de Castro, Antonio Callado, Leandro Konder, Ferreira Gullar, Eric Nepomuceno, Íttala Nandi, Leonardo Boff, Ivo Lesbaupin, Hugo Carvana, Emir Sader e tantos outros.

Ao cumprimentar Barbosa Lima Sobrinho, Fidel disse não acreditar que ele tivesse 95 anos:

- Precisamos colher algumas amostras genéticas do senhor - brincou.

Fidel falou durante uma hora da situação de Cuba e de política internacional, até que o interrompi:

- Afinal, convidamos o Comandante para um encontro, e não uma conferência.

A roda se descontraiu, Fidel reclamou:

- Não há nada que beber ou comer aqui?

Tomou uma dose de uísque e comeu com apetite variados canapés.

À meia-noite nos retiramos. A segurança avisou que o elevador social parara e o de serviço só chegava até o 7º andar. Sob luzes de lanternas, Fidel e eu descemos do 9º andar por estreitas escadas. Para chegar ao elevador de serviço, fomos obrigados a passar por dentro do apartamento de uma família, cruzando a sala e a cozinha.

A 29 de janeiro de 2008, participei em Cuba, na Universidade de Ciências Informáticas, da inauguração da escultura que Oscar Niemeyer dera de presente aos 80 anos de Fidel: uma enorme cara vermelha do imperialismo cuspindo fogo, e a pequena Cuba erguendo a bandeira diante dela, resistindo. Fazia muito frio e havia milhares de estudantes na praça.

No discurso que proferi, comparei Niemeyer a Martí: os dois eram latino-americanos, revolucionários, poetas e anti-imperialistas. Elogiei a coerência e a modéstia de Niemeyer, cujas obras conheci desde criança na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte.

A última vez que estive com Niemeyer, em seu escritório, foi a 3 de junho de 2010, quando levei até ali Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado de Cuba. O arquiteto demonstrava muito bom humor e nos falou entusiasmado do álbum de fotos de todas as igrejas que ele havia projetado:

- Tive formação religiosa. Na fazenda de meus avós – contou – os janelões da sala eram entremeados de oratórios. Minha avó nos obrigava a ajoelhar e rezar antes de cada refeição. Depois deixei de ter fé. Mas sempre gostei de desenhar igrejas.

Ressaltei a beleza da catedral de Brasília, cujas linhas arrojadas lembram mãos abertas ao Transcendente, botão de flor se abrindo ao Infinito, feixe de ramos de trigo evocando o Pão da Vida, o coração de boca aberta à fome de Deus.

Niemeyer, então com 102 anos, comentou que uma vez por semana recebia um grupo de amigos para aulas de cosmologia e astrofísica ministradas ali no escritório por um professor de física. Seu entusiasmo com o que aprendia lembrava um jovem estudante.

Guardei dele este belo poema intitulado Autodefinição:

Na folha branca de papel faço o meu risco / Retas e curvas entrelaçadas. / E prossigo atento e tudo arrisco / na procura das formas desejadas. / São templos e palácios soltos pelo ar, / pássaros alados, o que você quiser. / Mas se os olhar um pouco devagar, / encontrará, em todos, os encantos da mulher. / Deixo de lado o sonho que sonhava. / A miséria do mundo me revolta. / Quero pouco, muito pouco, quase nada. / A arquitetura que faço não importa. / O que eu quero é a pobreza superada, / a vida mais feliz, a pátria mais amada.


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