MAIS MULHERES!
Mulheres da Amazônia cobram espaço nas negociações da COP30
Indígenas, quilombolas e periféricas apontam falta de lideranças femininas e locais; COP só teve 5 presidentes mulheres
Amanda Moser [editores@diarinho.com.br]

Por Cecilia Amorim | Edição: Bruno Fonseca
A COP30 está chegando. Belém tem se preparado para a Conferência do Clima com obras que mudam a paisagem urbana e discursos que ecoam compromissos globais contra a crise climática. O espaço será palco de grandes negociações diplomáticas, que visam estabelecer metas de redução de carbono e planos para frear o aquecimento global do planeta. Enquanto isso, mulheres indígenas, quilombolas e periféricas travam uma batalha dupla: contra a crise climática, que já afeta seus cotidianos, e pela inclusão genuína em espaços de poder que historicamente as silenciaram.
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Apesar de serem as mais impactadas pela crise do clima e estarem na linha de frente das ações de cuidado com o território, as mulheres ainda são minoria nos espaços de decisão globais. Dados do Painel de Gênero da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) mostram que a presença feminina nas delegações nacionais nas Conferências do Clima segue desigual: em média, apenas 30% a 35% dos representantes são mulheres. O avanço rumo à paridade de gênero tem sido lento. Entre 2008 e 2019, o número de mulheres como chefes de delegação subiu de 12% para 27%. Já em 2022, na COP27, esse percentual chegou a 34% – um crescimento, mas ainda distante do equilíbrio.
Essa desigualdade também se reflete nas posições de maior liderança. Em 28 edições das COPs, apenas cinco mulheres chegaram à presidência do evento. Enquanto países nórdicos e da União Europeia apresentam delegações mais próximas da paridade, outras nações ainda mantêm uma participação majoritariamente masculina. O contraste mostra como a representatividade das mulheres nos processos de decisão climática ainda é um desafio, mesmo sendo elas as que carregam de forma desproporcional os impactos da crise ambiental em suas comunidades.
São elas que, vivendo nas aldeias, nos quilombos, nas beiras dos rios e nas periferias urbanas, sentem primeiro – e mais duramente – os impactos da crise climática: calor extremo, chuvas destrutivas, ameaça à segurança alimentar. Elas chegam à conferência não como simples espectadoras, mas como portadoras de saberes ancestrais e soluções práticas, desafiando um sistema machista. Sua luta revela o paradoxo central deste encontro global: como discutir o futuro da Amazônia sem ouvir aquelas que sempre a mantiveram de pé?
E a COP30 com isso?
- Apesar de estudos apontarem que mulheres estão entre os grupos mais afetados pelas crises climáticas, elas são a minoria das chefes de delegação envolvidas nas negociações da COP. Mulheres presidiram o evento apenas 5 vezes.
Marinette Tucano defende ecofeminismo, ancestralidade e resistência
Em Belém, a contagem regressiva para a COP30 já trouxe mudanças na rotina da cidade que se tornou um canteiro de obras. Mas, por trás das grandes negociações diplomáticas e das metas globais, estão as vozes das mulheres da Amazônia que carregam a urgência de serem ouvidas nas decisões que impactam suas vidas. Entre elas, Marinete Tukano, liderança indígena, coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), coloca em palavras o que significa ser mulher e amazônida em um tempo de colapso climático.
“Nós, mulheres, carregamos no corpo o território. Nossa luta é pela vida, pela floresta e pela nossa existência enquanto povos”, resume Tukano. Para ela, a ideia que conecta a natureza à figura feminina vai além da metáfora: está na prática de cultivar a roça, pescar, proteger o rio, gerar e cuidar da vida.
Para a liderança indígena, a COP é um espaço de visibilidade, mas também de exclusão. Ela recorda as barreiras que as mulheres indígenas enfrentam para participar: passaportes caros e burocráticos, dificuldades de credenciamento, o peso financeiro das longas viagens e a falta de estrutura para mães que precisam deixar seus filhos aos cuidados de terceiros.
“Quando a gente consegue chegar nesses espaços, já foi uma batalha imensa. Muitas desistem porque não têm como bancar essa logística. E isso limita quem pode falar em nome da Amazônia”, explica. A organização está se preparando para levar nove mulheres a Belém. Os altos custos de deslocamento na Amazônia são um dos principais gargalos para uma participação maior no evento.
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A UMIAB, que coordena mulheres de diferentes povos amazônicos, vem se organizando para garantir que as indígenas estejam na COP30. Para Tukano, a presença feminina é vital, porque as mulheres são as primeiras a sentir os impactos das mudanças climáticas em suas comunidades.
A liderança explica que as mudanças climáticas não são mais uma ideia distante, são vividas no dia a dia, nos rios que estão secando, nos peixes que estão diminuindo, na agricultura que sofre com estiagens ou enchentes extremas. “A segurança alimentar das comunidades está em risco. O que antes era fartura, hoje é incerteza. Isso causa adoecimento físico e também mental”, relata.
As mulheres, que tradicionalmente são responsáveis pela alimentação e pela saúde das famílias, sentem primeiro as consequências. Muitas recorrem à venda de artesanato nas cidades como estratégia de sobrevivência, mas enfrentam racismo, falta de políticas públicas e invisibilidade. “Há mulheres indígenas morando nas periferias de Belém que são esquecidas. Elas existem, resistem e também são Amazônia”, afirma a líder indígena.
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Um dos pontos que a liderança pontua é sobre a pluralidade amazônica. “A Amazônia não é só floresta. É rio, mar, cidade, periferia, quilombo, aldeias. É afrodescendente e também indígena”, pontua. Essa visão amplia o debate sobre clima, mostrando que o território amazônico é feito de diversidade de modos de vida, todos ameaçados pela crise ambiental e pelo avanço de projetos extrativistas. Por isso, os debates precisam considerar essa pluralidade.
A preparação para a COP30, que reunirá milhares de pessoas em Belém, expõe tanto os contrastes urbanos quanto os desafios de quem vem das comunidades. Para Marinette, a conferência só terá sentido se abrir espaço real para essas vozes: “Não basta usar a Amazônia como vitrine. É preciso escutar quem vive aqui, principalmente as mulheres, que já estão na linha de frente da crise climática”.
“Não há justiça climática sem as mulheres quilombolas”: protagonismo ancestral na COP30

Enquanto o mundo discute metas e acordos para frear a emergência climática, um grupo de mulheres quilombolas de diferentes regiões do Pará se articula para que suas vozes, corpos e vivências estejam presentes na trigésima Conferência do Clima. A participação das mulheres na COP30 está sendo organizada em parceria com diversos movimentos sociais, com o objetivo de levar para um espaço de discussão global o conhecimento ancestral de quem vive e protege a floresta.
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A estratégia passa pela criação de um estande coletivo, que funcionará como um ponto de convergência e diálogo. Nesse espaço, elas realizarão sessões colaborativas sobre gênero, direitos das mulheres, participação política, social e econômica, sempre entrelaçando esses temas com as pautas específicas dos povos quilombolas.
“O objetivo é garantir visibilidade e fortalecer a voz das mulheres quilombolas, colocando nossas experiências e lutas no centro das discussões sobre justiça climática e direitos humanos”, explica Carlene Pristes, coordenadora de gênero da Malungo, Coordenação das Associações Quilombolas do Pará, organização que representa e defende os direitos de mais de 600 comunidades no estado.
A iniciativa não é simbólica; é estratégica. Para Pristes, a presença dessas mulheres em espaços de decisão climática é fundamental, pois elas são detentoras de soluções e práticas ancestrais para enfrentar a crise.
“Somos diretamente impactadas pela crise climática, mas, ao mesmo tempo, somos guardiãs de práticas ancestrais de cuidado com o território e com a vida do nosso povo. Nossos quilombos vivem na Amazônia, cuidam da floresta, dos rios e da terra, e as mulheres têm um papel central nesse processo, tanto no trabalho coletivo quanto na preservação dos saberes”, afirma.
A articulação pretende levar uma comitiva de cem mulheres quilombolas à COP30. O corpo dessas mulheres carrega a mensagem política de que a luta pela preservação do planeta é indissociável da luta por justiça social, direitos humanos e igualdade de gênero.
“Quando as mulheres quilombolas ocupam esses espaços, não estamos falando só da defesa do meio ambiente, mas também de justiça social, de direitos humanos e de reconhecimento do nosso protagonismo político”, ressalta Pristes. “Estar na COP significa dizer que a luta contra as mudanças climáticas precisa considerar as vozes de quem está na linha de frente, de quem sente os efeitos no cotidiano, e tem propostas reais para cuidar da terra de forma sustentável e justa.”
“Quem conhece a Amazônia somos nós”: vozes periféricas alertam para exclusão na COP30

Enquanto o calor se intensifica e as chuvas castigam a cidade com mais força, nas áreas urbanas, são as mulheres das periferias que primeiro sentem na pele os efeitos da crise climática. “A impressão que a gente tem é que o nosso inverno foi mais curto esse ano. É uma quentura que a gente sente o tempo todo”, relata Flávia Ribeiro, jornalista, pesquisadora, ativista feminista negra uma das vozes que emerge das quebradas amazônicas.
Quando a chuva vem, não traz alívio, mas destelhamentos, enchentes e alagamentos. São essas comunidades, com menos acesso a serviços públicos e recursos financeiros, que mais são impactadas pela emergência climática, e também são as que têm menos capacidade de se recuperar e as que menos recebem políticas públicas – e isso tudo isso é reflexo do racismo ambiental.
Essas vozes enfrentam barreiras históricas para ocupar espaços de decisão. Os obstáculos são os mesmos de sempre: o cruzamento perverso do racismo, do machismo e da LGBTfobia. “Essas mulheres são representadas em menores números, e aquelas que conseguem ocupar esses espaços sofrem violências cotidianamente”, denuncia a jornalista . “Elas são lembradas de que aquele espaço não é para elas. É uma estrutura racista e machista que não é pensada para elas”.
O apagamento é tão profundo que, mesmo em documentos oficiais elaborados na região, o maior grupo demográfico da Amazônia – as pessoas que se declaram negras – é invisibilizado. “Saiu o [documento da] Declaração de Belém e nele não é citado em nenhum momento negro, negra, negritude, raça”, exemplifica a pesquisadora. “O maior grupo demográfico foi simplesmente não citado. E o poder de nomear é importante, porque se a gente não nomeia, a gente não consegue fazer políticas públicas”.
A Declaração de Belém é um documento escrito a partir da Cúpula da Amazônia que ocorreu em 2023. Nos seus mais de cem parágrafos, detalha os desafios em relação à proteção do território. Temas como desenvolvimento sustentável, saúde, exploração ilegal de madeira e recursos minerais, ciência e tecnologia e situação social das famílias que vivem na floresta, a proteção dos povos indígenas e proteção do bioma, sempre tendo em mente a redução das desigualdades e o combate à fome.
“Indígenas foram citados quase 200 vezes. Não é uma crítica aos povos indígenas, eles precisam estar lá. Mas negros e negras não são citados. As negras e negras que estão nas periferias das cidades não são citados”, explica a pesquisadora.
A crítica central é que a COP30 está sendo planejada por pessoas de fora da realidade amazônica. “Quem vem planejar esse evento? São pessoas do sudeste, em sua maioria brancas, que estão dizendo para a gente e para o mundo o que é a Amazônia”, afirma a jornalista. “Há, nas entrelinhas do processo, um colonialismo interno que trata as vozes amazônidas como inferiores e silencia seus saberes”, lamenta.
São justamente esses grupos historicamente excluídos que detêm o conhecimento necessário para enfrentar a crise climática. “Nós conhecemos melhor os problemas que estão acontecendo aqui e nós temos a solução”, defende Ribeiro. “A gente tem que ser ouvida desde o planejamento, não ser um grupo convidado para fazer uma foto. O Brasil e o mundo têm Amazônia, porque nós, amazônidas, estamos aqui”.
Amanda Moser
Amanda Moser; jornalista no DIARINHO, formada pela Univali. Produz conteúdo para as redes sociais e portal on-line com foco na editoria de geral e variedades.