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BRASIL

Indígenas protestam contra lei que inviabiliza educação presencial nas aldeias do Pará

Cerca de 300 ocupam Secretaria Estadual de Educação em oposição à política que privilegiaria ensino à distância

Agência Pública [editores@diarinho.com.br]

Por Alan Bordallo | Edição: Giovana Girardi

Uma lei aprovada no fim do ano passado no Pará está gerando intensos protestos de lideranças indígenas de diferentes etnias e regiões do estado. Eles acusam o governo de desmantelar o sistema de educação indígena. Os manifestantes ocupam, desde terça-feira (14), a sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém, pedindo a revogação imediata da Lei 10.820/2024. 



A Polícia Militar foi acionada para tentar dispersar os manifestantes, cortou energia e água do prédio, jogou spray de pimenta nos banheiros e impediu a entrada da imprensa, de representantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas os indígenas continuam no local, depois de forçarem o portão e ocuparem as estruturas da Seduc. 

Barreira de policiais em frente à secretaria de educação do Pará
Polícia tenta dispersar protesto indígena na Secretaria de Educação do Pará, mas ocupação persiste (Foto: Raimundo Paccó/Agência Pública)

Há cerca de 300 indígenas no local, incluindo caciques das etnias Munduruku, Wai Wai, Tembé, Arapiun e Tupinambá, que afirmam representar os mais de 55 povos indígenas presentes no território paraense.


Depois que eles entraram, o portão foi novamente fechado e ninguém mais conseguiu entrar. As lideranças dizem que só negociam com a governadora em exercício, Hana Ghassan (MDB) – o governador Helder Barbalho (também do MDB) está em viagem ao exterior –, ou com o titular da Seduc, Rossieli Soares, que teriam autonomia para revogar a lei. Ao fim do terceiro dia de protesto, Soares foi à secretaria no fim da tarde de quinta-feira, mas até o fechamento desta reportagem não havia ocorrido diálogo.

“A energia cortaram, a água [cortaram] e jogaram spray de pimenta. Estamos em cárcere privado. Tem criança, tem idoso, tem cacique que vieram de muito longe. E nós não vamos sair daqui, porque não saímos do nosso território para ficar de blá-blá-blá”, disse Alessandra Korap, liderança Munduruku, no primeiro dia de ocupação. Em apoio à demanda indígena, o Sindicato dos Trabalhadores de Educação Pública do Pará (Sintepp) decidiu entrar em greve geral, com início em 23 de janeiro.


Alessandra Korap, liderança Munduruku, fala sobre as condições precárias enfrentadas pelos indígenas (Foto: Raimundo Paccó/Agência Pública)

A lei, aprovada em 19 de dezembro, no fim do ano legislativo, em votação fechada – e marcada pela repressão da Polícia Militar, que usou balas de borracha e spray de pimenta contra os professores estaduais – , altera o plano de gratificações do Sistema Modular de Ensino (Some) e de sua versão para os povos indígenas (Somei). 

Redução de gratificações inviabiliza ensino presencial; governo quer educação à distância

A medida reduz as gratificações fixas de R$ 7 mil para valores que podem variar entre R$ 1 mil e R$ 7 mil, de acordo com quatro níveis de complexidade que variam de acordo com cada território onde o Some é implementado. A mudança, porém, não foi regulamentada, e os critérios para estabelecer os graus de complexidade e a gratificação correspondente permanecem incertos. 

Para os indígenas e sindicalistas, isso, na prática, pode inviabilizar a educação indígena nas aldeias e em locais mais remotos. O recurso é necessário para a logística de viagens dos professores às comunidades indígenas, do campo ou ribeirinhas. É com ele que os professores pagam deslocamento, hospedagem, alimentação, combustível e até confecção de materiais pedagógicos.

Em substituição, o governo do estado já implementa na rede de ensino o Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep), modalidade de ensino à distância que funciona com uma televisão e um modem da empresa Starlink. Cada aula, transmitida a partir da sede da Seduc, em Belém, é acessada simultaneamente por até 80 salas de aula em diferentes municípios do estado. Nesses locais fica apenas um professor mediador, de qualquer disciplina, para reunir dúvidas dos alunos. 

Os indígenas argumentam que o sistema é incompatível com várias aldeias, muitas das quais não possuem energia elétrica e dependem de geradores a diesel para necessidades do dia a dia. “Os alunos estão sendo abandonados, os professores também. Aula online não serve pra gente porque muitos alunos não falam português. Isso é violação de direito, é violação da nossa cultura”, disse Alessandra em um vídeo publicado nas redes sociais.


O Some funciona no Pará há mais de 40 anos. Foi concebido para que o ensino médio chegasse às localidades mais remotas do estado, como zonas rurais, ribeirinhas, aldeias indígenas e territórios quilombolas, onde o Executivo estadual tinha dificuldade em manter um professor fixo. 

O programa é organizado em módulos de três meses, com os professores visitando comunidades preestabelecidas semanalmente. Cada módulo funciona como um intensivo de uma disciplina, que terá todo o seu conteúdo ministrado durante os três meses. Ao fim de cada módulo, os professores atendem outras comunidades.

A logística dessas viagens normalmente envolve custos altos, motivo pelo qual os professores do Some recebem, além do salário, as gratificações. Mas, apesar de ser um modelo preferido pelas comunidades, a situação também é precária, como observou reportagem da Agência Pública. Como o projeto não possui uma estrutura própria de escolas, os professores usam as salas de aula de escolas municipais de nível fundamental, não raro em péssimas condições de conservação.

Escola moderna vira sauna

No Pará, um dos municípios pioneiros na implementação do Some foi Igarapé-Miri, maior produtor de açaí do estado e do Brasil (em 2022 foi responsável por 21,7% da produção nacional, totalizando 422,7 mil toneladas). Em novembro de 2024, a reportagem da Pública esteve no município para visitar escolas onde o Some funciona. 

A primeira parada foi no rio Anapu, na Vila Menino Deus, distante mais de uma hora em lancha rápida da sede do município. Lá as aulas de ensino médio ocorrem na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dom Antônio Macedo Costa.


Entregue em 2023, a escola conta com infraestrutura impecável: prédios novos, quadra esportiva, refeitório amplo e centrais de ar condicionado em todas as salas. Porém, a energia elétrica monofásica transformou a escola em um elefante branco, já que a energia fraca não dá conta dos aparelhos. As salas que deveriam ser climatizadas se transformam em saunas. Uma professora, que não quis se identificar, relatou ter presenciado, em duas oportunidades, alunos desmaiarem em sala de aula por causa do calor.

No dia em que a reportagem esteve no local, a maior parte das atividades de aula aconteceu no refeitório, que fica em um pátio amplo e um pouco mais arejado. Pelas condições de aula, porém, o regime de estudo é alterado, com alunos entrando no prédio às 13h e sendo liberados por volta das 15h30 para concluírem as atividades em casa.

O bigode ralo e alguns precoces cabelos brancos contrastam com a aparência jovial do estudante Nilmar Lima Barbosa. Ele tem 19 anos e voltou a estudar em 2024, após um ano afastado da escola (ele já havia passado um ano sem estudar em 2021 por causa da pandemia). 

Nilmar, estudante de Igarapé-Miri, enfrenta calor e desafios para estudar (Foto: Raimundo Paccó/Agência Pública)

Seus dedos e unhas têm marcas da tinta arroxeada do açaí que coleta durante uma jornada de cinco horas pela manhã, antes de ir para a escola. A atividade é o sustento de sua família, como a de muitas outras da região, e um dos motivos de ter interrompido os estudos.

Ele voltou à escola por incentivo da mãe, mas relata que não tem sido fácil. “Tem que se empenhar muito para aprender. Em sala de aula já é complicado, por causa do calor. A gente passa três horas dentro da sala e já sai lavado [de suor]. Mas é pior estudar em casa com material, por não ter a explicação que o professor passa na sala de aula”, conta. 

Mesmo assim, ele não pensa em desistir e tem planos para o futuro. Após concluir o ensino médio, ele sonha em estudar agronomia, para juntar o conhecimento científico ao que adquiriu empiricamente na lida nos açaizais.

Mais próxima do centro da cidade, a Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Bom Jesus I é uma típica edificação ribeirinha: construída toda em madeira sobre um palafita no rio Caji, possui salas de aula sem divisórias completas, o que permite que o som de uma aula seja ouvido por uma ou mais turmas. Como não dispõem de hospedagem, os professores vinculados ao Some costumam utilizar as dependências da escola para a estadia durante as semanas do módulo.

Escola ribeirinha no Pará sofre com alagamentos e falta de estrutura, mas mantém aulas do Some Raimundo Paccó/Agência Pública)

Por se tratar de uma escola na beira do rio, nos primeiros meses do ano, considerados os de inverno na Amazônia, o local costuma sofrer com alagamentos e aparecimento de cobras e de outros animais silvestres. 

“Essa escola já teve sua estrutura inteira reprovada pelo Corpo de Bombeiros, e a prefeitura municipal sabe, mas não tomou providências. É um desafio a gente não surtar diante de tantos obstáculos. Porque é uma odisseia para chegar lá, outra odisseia permanecer. E, por fim, ensinar algo aos alunos. O que sobra de sanidade, a gente guarda para exercer nossa função”, se queixa um professor que já ministrou módulos nessa escola e pediu anonimato.

Mesmo nessas condições, a escola Bom Jesus I está incluída no edital para contratação de professores em cadastro de reserva para inclusão no sistema de educação à distância do Cemep. “A escola não tem nem condições de receber alunos com aula presencial, imagina com Cemep”, provoca o mesmo professor.

No ensino à distância, alunos não conseguem mostrar exercícios

Apesar da resistência da categoria contra a implantação do Cemep, o sistema já vigora em várias escolas do Pará. A reportagem visitou a Escola Emaús, situada na comunidade Novo Paraíso, também em Igarapé-Miri. Composta por um pavilhão com três salas de aula, um banheiro (que dispõe apenas de um vaso sanitário e não tem pia para higiene das mãos), leva em sua fachada a inscrição “Patrimônio da Assembleia de Deus”. Uma das salas de aula está cedida para o funcionamento do Cemep, atendendo o segundo ano do ensino médio.

Durante a visita da reportagem, oito alunos assistiam a uma aula de matemática em uma televisão de 60 polegadas. A transmissão é garantida a partir de um modem da Starlink instalado na escola. O mediador responsável por manter a dinâmica em sala era o professor Roberto de Cássio Viana, que assumiu a função em 30 de setembro e, originalmente, atua nas disciplinas de estudos amazônicos, história e geografia.

“Minha função como mediador é chegar antes do horário, ligar equipamentos, receber os alunos, fazer a chamada e aguardar o momento da aula. Como sou pedagogo, tenho conhecimento básico das áreas”, disse. As aulas vão das 13h30 às 17h.

Com mais de 20 anos de magistério, Viana conta que estava se adaptando ao novo formato, iniciado havia pouco mais de três meses, quando a reportagem esteve no local. Alguns hábitos, porém, fazem falta. “É uma adaptação. A gente chega aqui para dar aula, né? Tem hora que a gente fica meio se segurando, mas não pode intervir, porque a aula é do professor. Eu sou mediador”, explica. 

Como mediador, ele é responsável por reunir dúvidas e enviar para o professor de cada disciplina após as aulas e garantir que os alunos não se distraiam com os aparelhos celulares, já que se permite que acessem a mesma rede que transmite as aulas. Segundo o professor, no Cemep, até mesmo as aulas de educação física são transmitidas a partir da sede da Seduc, em Belém.

Durante a aula de matemática, o professor passou aos alunos uma equação e deu um tempo para resolução do problema. Para mostrar os resultados, cada mediador pede a vez na transmissão, e um aluno pode mostrar seu resultado: com os cadernos na mão, eles levam a folha junto à câmera para o professor avaliar se está correto ou não. 

Mas com mais de 80 salas de aula conectadas, era inexequível, pelo tempo de aula, que todas as classes tivessem alunos interagindo com o professor responsável pela transmissão. Em pelo menos uma ocasião, foi possível notar que o professor não conseguiu visualizar o resultado demonstrado pela resolução ruim de imagem. Com meia hora de aula, uma tela preta: o sistema caiu e demorou 20 minutos para a reconexão. “Por incrível que pareça, isso não acontece com frequência”, disse, no entanto, o mediador.

Apesar dos problemas do Some, os moradores de Igarapé-Miri ainda preferem o ensino à distância. É o que ficou evidente em uma sessão realizada na Câmara Municipal da cidade para discutir a permanência do sistema nas zonas ribeirinhas do município. A sessão contou com a adesão de pais de alunos e professores do sistema, com direito à fala.

Chamou atenção o depoimento de Soraia Souza, moradora da Vila Boa União desde a infância. Hoje com 50 anos, ela conta ter interrompido os estudos aos 12 anos de idade devido à extinção da escola na localidade. Ela só conseguiu voltar à escola nove anos depois, com a implantação do Some. Foi quando conseguiu concluir os ensinos fundamental e médio. E logo partiu para fazer faculdade de pedagogia. 

Hoje diretora da Escola Municipal Neusa Rodrigues, que atende do maternal ao 5º ano, Soraia critica a ideia de substituir o regime presencial por educação à distância nos moldes do Cemep. “A realidade do interior é diferente. Temos muitos problemas de energia, às vezes passamos dois, três dias sem. Quando o tempo começa a fechar, o sinal de internet vai embora. Não acredito que assistir aula pela televisão daria certo aqui”, diz.

Secretaria nega mudanças

Em nota enviada à reportagem, a Seduc negou que o Some será encerrado. “As áreas que já contam com este sistema de ensino continuarão sendo atendidas por ele, no mesmo formato, e a continuidade do programa está garantida, conforme artigo 46 e anexo V, da Lei 10.820, de 19/12/2024. A lei criou uma gratificação de até R$ 7 mil, adicional ao salário inicial do professor pago pelo governo do Pará, que hoje é de R$ 8.289,89, além de mais R$ 1,5 mil de vale-alimentação”, disse a secretaria por meio de nota. 

O Sintepp e representantes contestam essa afirmação da Seduc. Em nota publicada em suas redes sociais, o sindicato afirma que o texto da lei condiciona o pagamento da gratificação de acordo com quatro níveis de complexidade, que variam de acordo com cada unidade e têm critérios ainda a serem regulamentados pela Seduc.

Segundo o Sintepp, a nova lei exclui direitos como o pagamento dessas gratificações nas férias de janeiro e julho e em licenças superiores a 30 dias. “Não há regulamentação da lei aprovada. Não sabemos de nada do que iremos receber, pois a portaria de lotação de 2025 não foi divulgada pra nós, nem como será o nível de complexidade das localidades”, afirma um professor que pediu para não ser identificado.

A Seduc disse ainda que “também não é verdade que o ensino médio presencial será substituído por educação à distância”. Na nota, a secretaria disse que não foi feito nenhum pedido oficial de reunião”. Depois da invasão, a Seduc fez um pedido para que as lideranças indicassem uma comissão, o que até o momento não aconteceu”, continuou.

A reportagem questionou ainda de onde partiu a ordem para que a imprensa não acessasse o prédio, mas não obteve resposta.

Em entrevistas a emissoras de televisão, o secretário Rossieli Soares afirmou que o movimento se tornou “político” e que o governo negocia com entidades indígenas. As lideranças da ocupação, porém, negam. “Queremos dizer ao secretário que não existe uma comissão negociando conosco. Se ele diz que há uma negociação, até agora ninguém veio sentar com a gente. Queremos a presença de quem tem autonomia para que possamos sair daqui com uma portaria assinada e publicada no Diário Oficial”, disse o cacique Dada Borari. 

Cacique Dada Borari, uma das lideranças do protesto, exige diálogo com o governo sobre a educação indígena (Foto: Raimundo Paccó/Agência Pública)

“Estão tentando nos vencer no cansaço. Mal sabem eles que nossos antepassados estão aqui nos dando força. Mal sabem eles que a gente luta há mais de 500 anos e não vamos descansar. Portanto, saiam dos seus gabinetes e venham conversar com o povo”, disse Auricélia Arapiun.

O MPF e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) movem ação na Justiça Federal para que cada um dos povos e comunidades tradicionais do Pará seja consultado de forma livre, prévia e informada, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), antes de qualquer tomada de decisão do Estado.

Até que essa consulta ocorra, o poder público deveria interromper qualquer medida de mudança do formato da educação indígena e deve garantir a manutenção da educação presencial, defendem o MPF e o MPPA na ação.




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