HISTÓRICO
Certidões de óbito do primeiro prefeito de BC e de outras 433 vítimas da ditadura serão corrigidas
CNJ aprovou resolução que prevê retificação nos documentos de desaparecidos e mortos nas prisões
João Batista [editores@diarinho.com.br]
Em meio à repercussão do filme “Ainda estou aqui”, que mostra a luta de Eunice Paiva para o estado reconhecer o assassinato do marido Rubens Paiva nos porões da ditatura militar, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução pra corrigir certidões de óbito de 434 mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura, reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade. Na lista está o primeiro prefeito de Balneário Camboriú, Higino Pio.
A resolução regulamenta o dever de reconhecer e retificar o registro de óbito das vítimas de perseguição política. As certidões passarão a contar com a informação de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”, na causa da morte.
A aprovação foi em sessão na terça-feira no plenário do CNJ. O tema já tinha sido votado pela Quarta Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde os ministros Marco Aurélio Buzzi e Antônio Ferreira foram vencidos no pedido para fazer constar na certidão de óbito o registro de que a morte fora decorrente de tortura. Esse entendimento, porém, prevaleceu no julgamento do CNJ nesta semana.
“É um acerto de contas legítimo com o passado”, afirmou o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso. A aprovação foi unânime pelo plenário, em pedido proposto pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Segundo Barroso, a medida tem uma importância simbólica muito grande e alivia, de certa forma, a dor dos sobreviventes e das famílias que sofreram com a perseguição política que se seguiu ao golpe.
No filme “Ainda estou aqui”, elegível para concorrer a melhor filme estrangeiro no Oscar 2025, a advogada Eunice Paiva, interpretada pela atriz Fernanda Torres, trava uma luta de 25 anos pelo reconhecimento da morte do marido, o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva, sequestrado, torturado e assassinado pelo regime militar em 1971.
Em uma das cenas mais marcantes, Eunice ergue a certidão de óbito do marido, comemorando o documento obtido apenas em 1996. Em 2014, a Comissão da Verdade confirmou a morte de Rubens Paiva como vítima da ditadura.
Higino Pio virou “inimigo” do regime
O primeiro prefeito de Balneário Camboriú, Higino Pio, é uma das vítimas da ditatura reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade. Ele foi assassinado em 3 de março de 1969 no “camarote do capelão” da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa Catarina, em Florianópolis. A versão da morte, forjada pela Marinha, foi que Higino teria se matado por enforcamento.
Conforme perícia contratada pela comissão, a cena de suicídio foi montada. A conclusão foi de homicídio por estrangulamento. O relatório final da CNV recomendou a correção da certidão de óbito de Higino Pio, assim como a continuidade das investigações sobre o caso, para identificação e responsabilização dos agentes envolvidos na morte.
O corpo de Higino foi trazido para Balneário Camboriú em um caixão lacrado. Depois, ele foi enterrado no cemitério da Fazenda, em Itajaí. Higino nasceu em Itapema e morou em BC, onde foi o primeiro prefeito eleito, em 1965, pelo PSD, após a emancipação política da cidade de Camboriú. Ele era amigo de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe militar de 1964, e foi o único preso político catarinense morto nas dependências do Estado.
É pelo direito das famílias durante a ditadura militar que estamos dando um passo de cura, de reafirmar a democracia, de insistir que todos têm direito à verdade, e todas as instituições democráticas precisam ser defendidas” - Procuradora Eugênia Gonzaga
Mudanças na certidão
A certidão de óbito é lavrada pelo oficial do registro civil após a declaração do óbito, para comprovar o falecimento de uma pessoa. De acordo com o texto aprovado, as lavraturas e retificações nos registros de óbitos durante a ditadura serão baseadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, que reconheceu 434 brasileiros mortos ou desaparecidos no regime militar, entre 1964 e 1985.
As informações da CNV estão organizadas na declaração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, disse que a decisão do CNJ reaviva a importância da Comissão da Verdade, criada há 13 anos para investigar as violações de direitos humanos na época da ditadura.
A procuradora Eugênia Gonzaga lembrou que esteve presente na identificação de corpos de mortos pela ditadura e que as correções nas certidões vêm sendo feitas desde 2017, mas de forma administrativa.
Dos 434 casos de mortes e desaparecimentos confirmados, no entanto, apenas 10 certidões de óbito tiveram a correção concluída desta maneira. Nos documentos, ainda não constavam a data e causa da morte, apenas a observação sobre a lei 9140/1995, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas entre 1961 e 1988.
“Isso sempre foi muito ofensivo. Resolvia problemas burocráticos, mas não reparava, não dizia a verdade”, ressaltou Eugênia. O ex-deputado federal Nilmário Miranda, que propôs a criação da Comissão da Verdade, destacou o dia histórico da aprovação do CNJ. Segundo ele, o julgamento celebra a retomada de uma “pauta de memória, verdade, reparação e justiça”.