Cerco às bets
Empresária já perdeu dois apartamentos e fixou limite de R$ 1 no pix
Viciada em jogos de azar, ela relata perda de bens valiosos em entrevista sobre os efeitos devastadores da jogatina
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Por Renata Rosa
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DIARINHO: Por que você procurou o Jogadores Anônimos? Já havia casos na família?
Eu procurei o grupo Jogadores Anônimos porque sei do poder dos 12 passos. Procurei por eles na internet porque não conseguia ter controle sobre o jogo e eu jogava todos os dias. Na minha família tem uma tia e uma prima que são viciadas em jogos de aposta online, inclusive a minha tia vendeu o apartamento agora. Está vivendo de aluguel e nem pode pagar o aluguel porque está devendo a agiotas. Ela é ameaçada constantemente e, ainda assim, ela quer achar outros agiotas para pagar os agiotas e continuar jogando.
DIARINHO: Há quanto tempo você joga? E quando percebeu que se tornou um problema?
E.L.M - Eu jogo há muitos anos. Tive uma pausa longa. Em 2011, perdi dois apartamentos no jogo, por isso não tenho mais apartamento. Eu era jogadora compulsiva de bingo também. Todos os problemas que eu tinha eu transferia para o jogo. Na última perda grande fui para os EUA. Eu sempre apelava para uma fuga geográfica por causa do vício.
DIARINHO: Você também joga nos sites de aposta online? Que tipos de jogos te atrai?
E.L.M. - Todos nós que éramos compulsivos em jogo migramos para os jogos de aposta online, porque ficou muito acessível. E, novamente, saio do convívio social para ficar trancada em um ambiente em que ninguém me interrompe. Porque se ninguém te interromper tu achas que a chance de ganhar é maior. Eu jogava no tigrinho, coelhinho e todos os similares.
DIARINHO: Quais os prejuízos que a dependência em jogo te trouxe?
E.L.M - No início tu jogas e as plataformas te dão retorno. Ainda bem que não tive um retorno muito grande, senão estaria em busca desse retorno. Estou há dois anos novamente nessa compulsão e afastada da sociedade porque a gente fica dependente e obcecada pelo jogo.
Estou devendo uns R$ 150 mil no cartão de crédito. Tudo que eu tenho hoje é um carro financiado e pago aluguel. Hoje, meu pix é limitado a R$ 1 por dia no CNPJ e como pessoa física tem um limite de R$ 200. Eu parei de jogar porque não tinha mais graça jogar só um real, apertava um botão e já era. Aí eu comecei a pedir para as pessoas “deposita para mim R$ 100”. A pessoa depositava e eu jogava. Então eu limitei o pix para ter um controle.
DIARINHO: Esses dois apartamentos que você perdeu no jogo eram de herança?
E.L.M – Era o que tinha ficado para mim depois da separação. Eu dilapidei tudo o que eu tinha, na verdade. Meu marido atual é uma pessoa maravilhosa, não briga comigo, não separa de mim, mas como a gente é casado com comunhão de bens, a minha dívida é dele também.
Ele não fala nada, ele está totalmente atolado em cartões por minha causa, usei todos. Ele é médico, ganha bem e não vê um centavo. Mas no convívio com os filhos eles ficam tripudiando. Eu expus a situação, todos sabem da minha dependência.
Todo mundo está ganhando com isso, quem perde são os jogadores
DIARINHO: Como funciona o programa de 12 passos?
E.L.M. – Primeiro admitir que somos impotentes diante do vício e resolvemos pedir ajuda. Segundo passo é se entregar para Deus e pedir que ele tire a nossa obsessão. No momento em que você ingressa no grupo e se entrega, porque a tua vida não tem mais controle, é um poder superior que vai tirando a tua compulsão.
Eu fico me perguntando “será que eu já estou pronta pra aumentar o limite do pix?” porque passo vergonha no supermercado. Já aconteceu várias vezes de sair do mercado com as mãos abanando. Mas eu tenho certeza absoluta que não estou pronta ainda.
DIARINHO: E você já pensou em ficar sem o celular ou cartões para evitar cair em tentação?
E.L.M. – Eu já pensei, sim. Eu só tenho um cartão de uso coletivo lá de casa e os cartões de crédito que eu não fiquei devendo eu bloqueei.
DIARINHO: E o que você pensa sobre esta lei que liberou o jogo no Brasil, editada em 2018, e que está sendo regulamentada agora?
E.L.M. – Eu entendo que todo mundo está ganhando com isso, quem perde são os jogadores.
Influencers seduzem seguidores a apostar em jogos de azar on line
Depois que o Banco Central revelou a fortuna gasta pelos brasileiros nos jogos de apostas on line (R$ 20 bi por mês só em pix), está se formando um “cordão sanitário” para proteger os grupos vulneráveis, como beneficiários do bolsa família. Uma das medidas foi adiantar regras que só começariam a valer em janeiro de 2025, como proibir o uso de cartão de crédito, após pressão dos bancos e das grandes lojas de varejo por causa da alta inadimplência. E apertar o cerco às bets que se aliam a influencers e artistas populares para lavar dinheiro do crime.
A prisão da influencer pernambucana Deolane Bezerra, que tem 22,2 milhões de seguidores no Instagram, e o indiciamento do cantor Gusttavo Lima revelaram a relação abusiva entre celebridades e seus fãs, além de expor as transações ilegais usando compra e venda de bens de luxo para dar ar de legalidade ao dinheiro proveniente do jogo do bicho.
Deolane já tinha se envolvido com o escândalo do Play Premiado em 2022 (ganhar dinheiro assistindo vídeos mediante pagamento de R$ 197) e venda de robôs de investimento junto ao Vovô Rico. Ele teve bens apreendidos pela operação de Polícia Federal em 2023, depois de aplicar golpes envolvendo o mercado de criptomoedas em plataformas em paraísos fiscais.
Ajudante de cozinha passava a madrugada apostando
Uma das fãs que se tornaram apostadoras graças a Deolane é a ajudante de cozinha A.D., 38 anos. Ela veio do interior de São Paulo e conta que segue a influencer desde que Deolane passou a frequentar a casa de Carlinhos Maia, outro megainfluencer nordestino (31,6 MI). Carlinhos faz megafestas na “Casa da Barra”, em Alagoas, onde rola um reality show com outros influencers e fãs selecionados de todo o Brasil. Durante as noitadas há shows, brincadeiras, desafios e prêmios, regado a muita birita e jogo do tigrinho.
“Durante a festa, eles abrem uma live e colocam todo mundo pra apostar e postar nas redes. Passamos a madrugada toda jogando através dos links que mandam nos stories. Foi assim que comecei a jogar, logo depois da pandemia, em 2022”, revela a seguidora.
O reality de Carlinhos Maia é patrocinado pela bet Esporte da Sorte, cujo dono, Darwin Henrique da Silva Filho, conhecido bicheiro de Recife, foi preso junto com Deolane na operação Integration da Polícia Civil (PE). A bet patrocina quatro times de futebol da série A: Corinthians, Grêmio, Atlético-PR e Bahia.
A.D. disse que só parou de jogar porque começou a trabalhar à noite em um restaurante e por não ter conseguido sacar a última vez que apostou no jogo do coelhinho. “Eu apostei R$ 200 e ganhei R$ 800, mas a taxa para sacar era tão alta que desisti”, conta. Ela admite que não tem controle sobre o quanto ganhou ou perdeu, mas o filho caçula garante que o prejuízo passa de R$ 4 mil. “É porque ele sentiu que estava diminuindo o dinheiro que eu gastava com ele”, conta.
Dois mil sites de jogos de azar ilegais sairão do ar
Para reduzir o estrago nas finanças de trabalhadores e empresas, já foram apresentados 12 projetos de lei para restringir publicidade, dobrar o imposto (hoje é de 12%) e equiparar as bets a legislação que regula o cigarro e o álcool. O STF entrou na jogada e realizou audiência pública na sexta para discutir o modelo legal das bets. Na Noruega, onde só duas empresas estatais prestam o serviço, o número de dependentes caiu pela metade após proibir propaganda de madrugada, considerada o “horário nobre” da jogatina.
Foram autorizadas a atuar no mercado de apostas 114 bets que detém 225 marcas, já que cada uma pode ter três marcas. O prazo de 10 dias dado pelo Ministério da Fazenda para retirar dinheiro dos apostadores que ainda estavam nos sites ilegais terminou na sexta. A partir de agora, a Anatel vai tirar do ar dois mil sites.
Não à toa, as redes sociais foram inundadas na última semana com propagandas do jogo do tigrinho, coelhinho, touro e similares, com influencers dando dicas de “fazer dinheiro” antes que os sites caiam. Embora os aplicativos desses jogos tenham sido retirados da play store e apple store, eles podiam ser encontrados em links e anúncios patrocinados.
Investigações envolvem famosos
O que levou Deolane Bezerra a ser presa junto com a mãe foi a incompatibilidade entre a vida de luxo e os bens declarados à Receita Federal. A Lamborguini, avaliada em R$ 3,85 milhões, que ela ostenta no Instagram, foi comprada de Darwin Henrique da Silva Filho, o dono do Esportes da Sorte, ligado ao jogo do bicho. Foi apreendido em Campinas um McLaren avaliado em R$ 3 milhões, que estava com o filho Gilliard Santos, 20.
Já Gustavo Lima teve a prisão decretada em 27 de setembro e relaxada 24h depois. Ele foi indiciado por causa do suposto envolvimento de suas empresas Baladas Eventos e Vai de Bet, o qual tem 25% do capital, com lavagem de dinheiro. Ele vendeu um jatinho por R$ 6 milhões ao dono do Esporte da Sorte, e desfez o negócio no mesmo dia, para depois revender a José André da Rocha Neto por R$ 33 milhões, mais um helicóptero. A transação é suspeita pois foi feita com a emissão de 18 notas fiscais sequenciais com valor fracionado. José e a esposa estiveram na festa de aniversário do cantor, na Grécia, que foi acusado de dar guarida ao casal, que estava foragido. Ele alegou que não tinha intimidade com a dupla, que voou com ele de jatinho para a Grécia. O cantor manteve a agenda de shows e só vem ao Brasil pra se apresentar, como aconteceu no último sábado no Pará, e depois retorna à Miami.
Operação Game Over descobriu esquema envolvendo influencers em junho
Não é de hoje que a casa dos influencers está caindo. A utilização de versões diferentes do jogo do tigrinho para induzir os apostadores ao erro já levou para a jaula influenciadores menos conhecidos, como a alagoana Mylena Verolayne (1 MI de seguidores). Ela teve conversa gravada cobrando R$ 80 mil para simular que estava apostando, na operação Game Over, em junho. A cada mil apostadores, ela ganhava R$ 25 mil de comissão. O mercado de influencers é especialmente atraente para as bets porque custa pouco e o retorno é enorme.
O professor da Escola Politécnica da Univali, Fabrício Bertoluzzi, 45, conta que é muito fácil enganar o apostador, iludido pela possibilidade de lucro fácil e rápido, e que confia na influencer. “Esses jogos de azar contratam empresas especializadas em probabilidade matemática para criarem uma versão para a influencer com 90% de chance de ganhar, enquanto que o link que enviam aos seguidores tem 90% de chance de perder”, revela.
No site Reclame Aqui há várias histórias de consumidores humildes que tentam reaver o dinheiro perdido. Foi o caso de um jogador de BH, fã de Deolane Bezerra. Indagada sobre o porquê de ele não estar conseguindo sacar o dinheiro que ela mandou depositar durante a live, a assessoria primeiro disse que ela não tinha nada a ver com a zeroumbet, depois que a plataforma estava em manutenção e, por fim, afirmou que Deolane fez publicidade, mas não se responsabiliza pelos serviços prestados. “Ficar rico assim é fácil”, lamentou o jogador.
A sangria da renda dos nordestinos ficou tão escancarada que alguns estados começaram a criar leis para impedir a publicidade de jogos de azar na internet, como no Maranhão, o que promoveu o êxodo de influenciadores para outros estados, como Ceará e Piauí.
O advogado Fabio Fabeni, 46 anos, explica que se um seguidor se sentir lesado por propaganda enganosa, tanto o influencer quanto a casa de apostas podem ser processados por danos morais, com base nos artigos 37 e 67 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90).
“Dá para entrar com uma ação no juizado especial, que a princípio não tem custos, e também no fórum. A diferença é que se o valor for até 40 salários mínimos (R$ 56,4 mil) é caso para o juizado de pequenas causas”. Ele acrescenta que ambos podem ser acionados, porque todos os participantes da cadeia de anúncios são responsáveis pelo suposto dano.
Divórcios causados por vício em apostas dobraram
A advogada Carmen Dezideiro, especializada em Direito da Família, conta que o número de consultas de divórcio por causa do vício em apostas cresceu 125% em 2024, só nos primeiros nove meses do ano. Até agora, todas as consultas foram feitas por mulheres, que viram o relacionamento naufragar desde que os jogos de aposta online foram liberados no Brasil.
“O problema é que muitos casamentos são em regime universal de bens, em que há o ônus e o bônus, ou seja, tudo que for adquirido após a união é dos dois, assim com as dívidas, e as companheiras só tomam conhecimento quando procuram assistência jurídica”, revela.
Carmen conta ainda que muitos bancos não exigem a assinatura do cônjuge para a solicitação de empréstimos, mesmo em contas conjuntas, e que a instalação de aplicativos de banco no celular facilitou o envio de dinheiro às bets sem nenhum freio. “Para empréstimos de até R$ 10 mil os bancos não fazem tantas exigências, e caso tenham sido usados recursos do cartão de crédito, os juros podem chegar a 12% ao mês, é uma verdadeira bola de neve”, alerta.