Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente do Brasil a participar de uma Marcha para Jesus, em 2019. Na ocasião, foi fotografado fazendo gesto de “arminha”, como se estivesse executando alguém que estava no chão. Em 2022, em busca da reeleição (que não veio), ele participou da marcha em Vitória, no Espírito Santo, ao lado do senador evangélico Magno Malta (PL-ES) e outros candidatos que iriam concorrer nas eleições daquele ano. Entre a multidão, era possível ver uma arma gigante e um caixão com o símbolo do Partido dos Trabalhadores (PT). Fazia poucas semanas que um petista havia sido morto por um bolsonarista após uma discussão política.
Para pesquisadores que estudam o desenvolvimento da Marcha para Jesus no país – que é organizada pela Igreja Renascer em Cristo, do apóstolo Estevam Hernandes e da bispa Sônia, desde 1993, e foi crescendo à medida que a população se tornou mais evangélica –, esses acontecimentos são simbólicos de como o evento se consolidou como um palanque político nos últimos anos. Com privilégio mais evidente de políticos de direita e extrema direita.
Este ano, a Marcha para Jesus do Rio de Janeiro teve participação de pré-candidato à prefeitura e ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF). No ano passado, a Marcha na capital paulista reuniu aproximadamente 3 milhões de pessoas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não foi à marcha em São Paulo. Ele respondeu com uma carta em que agradecia pelo “honroso convite” e enviou como representantes a deputada Benedita da Silva (PT) e Jorge Messias, advogado-geral da União, que foi vaiado durante seu discurso. Na edição deste ano, no dia 30 de maio, Messias foi novamente o representante do presidente.
De evento evangelístico a palanque
A Marcha para Jesus se autodenomina como “maior evento popular cristão do mundo”. Ela se afirma como uma clara demonstração da capacidade de mobilização e da força da população evangélica no país. Este ano, cerca de 13 mil caravanas de fiéis de diferentes denominações evangélicas e estados participaram do evento.
Em suas mais de quatro décadas, a Marcha para Jesus deixou de ser apenas um evento de música e oração, como demonstra a ativa participação de políticos que figuram no trio principal e nos discursos feitos no palco.
No Brasil, a primeira Marcha para Jesus, realizada em São Paulo em 1993, reuniu 350 mil pessoas. A pesquisadora Raquel Sant’Ana explica que o crescimento do evento coincide com a chamada “explosão gospel” nos anos 1990 e a consolidação da Frente Parlamentar Evangélica no legislativo.
“Esses movimentos ofereceram um repertório comum de músicas, programas de televisão e agenda política, que passou a circular além das igrejas específicas, por um público amplo”, explica.
Nos anos 2000, a marcha já era um megaevento. “A partir de 2013, com o retorno das mobilizações de rua como modelo de ativismo político e a maior organização da chamada nova direita, as atividades de preparação da marcha, com caravanas de bairros e de igrejas, a elaboração de cartazes próprios, camisas de movimentos com pautas próprias e outros modos de manifestação do público passaram a ser mais comuns”, diz a pesquisadora.
Foi durante esse período que a Igreja Renascer tornou-se pouco a pouco um conglomerado de mais de 800 templos, escolas, gravadoras e emissoras de rádio e TV.
Foi durante a reeleição de Lula à presidência, em 2009, que a celebração passou a ser incluída no calendário oficial do país. A lei, sancionada pelo presidente, é de autoria do senador Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), que já foi um dos bispos da Igreja Universal, presidida pelo seu tio Edir Macedo.
No ano passado o governador de SP, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou uma lei que declara o evento como patrimônio cultural de natureza imaterial do estado.
Este ano, Tarcísio mais uma vez esteve presente no evento, acompanhado do prefeito da cidade, Ricardo Nunes (MDB), que acena para o eleitorado evangélico numa tentativa de se reeleger.
As edições dos anos 1990 eram apenas uma aposta, dialogavam com a mobilização nacional gerada com o impeachment do presidente Collor, mas ainda eram muito identificadas com a Igreja Renascer em Cristo, não havia adesão de um público e um arco de alianças abrangente como o de hoje.
A partir de 2013, com o retorno das mobilizações de rua como modelo de ativismo político e a maior organização da chamada nova direita, as atividades de preparação da marcha com caravanas, a elaboração de cartazes próprios, camisas de movimentos com pautas próprias e outros modos de manifestação do público, paralelas à programação do palco, passaram a ser comuns.
A marcha de SP, em especial, que sempre valorizou a institucionalidade e a participação de representantes dos executivos municipal, estadual e nacional, independentemente do seu espectro político, é tratada como uma prova da relevância do evento. A necessidade de respeitar e orar pelas “autoridades” é sempre defendida pelos apresentadores e pela organização. O que não quer dizer que o público não tenha suas próprias ideias e medidas do respeito devido (ou não) a esses políticos. Em 2018, por exemplo, a participação de Jair Bolsonaro, ainda na condição de parlamentar e candidato, inspirou algumas vaias, junto aos gritos de “mito” e aplausos.
Por que isso importa?
Maior evento gospel do país, a Marcha para Jesus cresceu junto com a população evangélica. A marcha se tornou um terreno de disputa política que tem sido dominado pelo bolsonarismo e pela extrema direita.
A aprovação do governo Lula entre os evangélicos segue baixa. Na opinião de Christina Vital, professora de Sociologia e coordenadora do Laboratório de Estudos Sócio-Antropológicos em Política, Arte e Religião da Universidade Federal Fluminense (UFF), a esquerda ainda falha na comunicação com esse público.
“Isso vem favorecendo os políticos e líderes mais à direita”, diz a pesquisadora.
Por outro lado, Raquel Sant’Ana, antropóloga e pesquisadora do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pontua que a direita investiu “sistematicamente recursos, quadros e elaborou projetos que incluem os evangélicos de um modo que a esquerda não faz”.
Sant’Ana pesquisa manifestações evangélicas na esfera pública brasileira. Um dos pontos do seu trabalho é a teologia do domínio, que defende a disputa do poder terreno por aqueles que querem implementar o reino de Jesus na Terra – o que valorizou a atuação de alguns grupos evangélicos na política institucional e na mídia.
“Também é importante notar que quem teve os melhores recursos para realizar essa disputa foi quem se associou à ditadura. Muitas concessões de rádios gospel, por exemplo, foram fruto dessa relação. Por outro lado, a esquerda evangélica, desmobilizada durante o regime, priorizou outras frentes de organização política e defendeu durante muito tempo que era necessário separar religião e política, deixando o terreno livre”, concluiu.
De acordo com Vital, a associação com a direita se intensificou ao longo do tempo.
“Embora essa associação já fosse verdadeira durante a Constituinte de 1987, vários parlamentares evangélicos que compunham a chamada ‘bancada evangélica’ votavam em favor de pautas sociais ligadas ao combate às desigualdades sociais, de acesso à saúde e educação”, diz.