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Como a senhora avalia a criação do Dia da Consciência Negra e a importância dessa data?
Márcia: É um dia de reflexão. Nós passamos nesse país por quase 400 anos de escravidão e precisamos refletir sobre isso. [Qual que é a principal reflexão? O povo brasileiro tem a consciência de que precisa refletir realmente sobre o racismo?] Não, as pessoas ainda não têm essa consciência. Tanto é que a gente ouve: “por que dia da consciência negra? Por que não dia da consciência humana?”; “Ah, por que não o dia do branco? O dia da consciência branca?”. Esse dia é pra isso: para que se reflita, para que as pessoas entendam que nós passamos por uma escravidão que dizimou pessoas da África e hoje, 137 anos depois da abolição da escravatura, estamos aqui ainda pedindo por direitos básicos, direitos mínimos, que é o direito de sobrevivência. [E pensar que essas pessoas foram largadas, jogadas, sem nenhum projeto de vida, sem nenhuma reinserção na sociedade…] Sim. Tanto que nós, do movimento negro, não comemoramos o 13 de maio. Nós comemoramos o dia 20 de novembro. Porque a história de Zumbi nos lembra a luta. Eu falo muito nas escolas: no dia 13 as pessoas escravizadas tinham, mal e porcamente, onde morar, onde dormir e o que comer. No dia 14 elas não tinham nada.
"Se vocês forem no fórum, vocês não vão ver juízes negros"
Como a senhora vê o avanço, ou retrocesso, no combate ao racismo estrutural nos últimos anos?
Márcia: Nós estamos vivendo um retrocesso, porque há 20, 30 anos nós víamos poucas, mas nós víamos pessoas negras nos movimentos, lutando; nós víamos vereadores, nós tínhamos deputados. Tivemos Antonieta de Barros, uma deputada negra aqui de Santa Catarina, e hoje? Quando a gente olha para os servidores da Câmara, para os assessores da Câmara, a gente não vê a assessoria de pessoas negras. “Ah, Márcia, mas não são capacitados?”. São muito capacitados. Temos pessoas que estão ali e podem tomar aquele lugar, mas não estão porque não é visível. [Por que esse retrocesso está acontecendo?] A gente teve alguns avanços com o governo federal por muito tempo, nós tivemos Lei de Cotas, o Prouni. Eu saí da universidade graças ao programa Universidade para Todos, e ali nós tivemos ascensão. Mas nos últimos seis, sete anos, isso deu uma quebrada. Nós tivemos governos federais que não estimulavam isso e inclusive desmontavam programas. Inclusive colocou pessoas “pretas”, em cargos ditos “importantes”, mas que ao invés de juntar as pessoas negras, afastou ainda mais. Isso foi complicado. [Como avalia o retorno do governo Lula. As políticas públicas voltaram com a força total?] Nós estamos na briga por uma ministra do STF negra. O último ministro negro do STF foi o Barbosa. Nós temos hoje só a Carmen Lúcia como mulher. Passou da hora de ter uma mulher negra e uma pessoa que entenda, não é só ser negra, mas uma mulher negra que conhece e sofre a nossa dor. Porque colocar um negro, só por colocar, não resolve; tem que ser alguém que entenda a nossa dor, principalmente no sistema judiciário. Se vocês forem no fórum, vocês não vão ver juízes negros. É muito raro.
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"Nós estamos na briga por uma ministra do STF negra"
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Casos de racismo têm sido punidos em jogos de futebol. A visibilidade e a punição desses episódios ajudam, de fato, no enfrentamento ao racismo?
Márcia: Sim, com certeza. Nós temos a lei Vini Júnior. Ela foi escrita pelo deputado Josemar, no Rio de Janeiro, e está sendo replicada em alguns estados. Quando pune o clube, a torcida daí sente. Infelizmente, a parte mais sensível do corpo humano é o bolso. Quando mexe no bolso, a pessoa se mexe. Ela vai parar, não porque não é mais racista, ela é obrigada a parar. Não pode continuar porque as indenizações estão cada vez maiores também. [Como estão os processos e indenizações no cível?] Acontece, mas não com a força que deveria. A indenização é conforme a dor. Se eu não sinto a dor da outra pessoa, como eu vou estipular? No cível, por exemplo, não tem uma tabela de danos morais. Eu não posso dizer que o dano é maior para ti ou menor para mim. Só quem sente na pele sentirá aquele dano. No caso do racismo, quando nós temos um juiz branco ele não sente a dor do negro. As indenizações são pequenas, mas está avançando. Um ponto que podemos ver é quando o crime de injúria racial foi equiparado ao crime de racismo. Antes, o criminoso entrava na delegacia, assinava um TC e saía antes da vítima dar o depoimento. Hoje, no mínimo ele vai dormir na cadeia. Porque o crime não tem mais fiança. [O Conegi fez no ano passado uma parceria para a capacitação do corpo policial da segurança pública. Como isso funcionou e quais foram os resultados?] Eu creio que tenha funcionado, porque era nossa maior reclamação quando a gente fez esse curso. A gente fez essa formação por conta da reclamação das pessoas do movimento negro que eram abordadas pela nossa segurança pública. A gente sabe que numa abordagem normal, é: “bom dia, boa tarde, senhor, o documento do carro, por favor”. Essa é uma abordagem padrão. Mas com a comunidade negra, com os filhos das pessoas mais idosas da comunidade negra, com os jovens, [é assim]: “E aí, negão, de quem esse carro?” Não foi o relato que a gente ouviu lá do Rio de Janeiro, São Paulo, não, era o relato daqui de Itajaí. O que a gente fez? Vamos fazer uma formação. Juntamos a secretaria de Segurança Pública, a secretaria de Cidadania, que na época a secretária era a Hilda Deola, que foi, bancou e peitou essa formação. Vieram quatro formadores de Florianópolis, deu alguns embates, porque a primeira frase que a pessoa diz é: “Tá, mas eu não sou racista, eu não faço isso e por que eu tenho que estar aqui ouvindo por todos?”. Foi obrigatório e eles ouviram. E, depois disso, nós não tivemos nenhuma denúncia no conselho sobre essa abordagem. [Essa frase dita na abordagem se manifesta como um racismo velado no cotidiano da população negra, em cidades de médio porte como Itajaí?] Isso é o tal do racismo institucional. A gente tem um alvo nas costas. A gente costuma brincar se a pessoa não sabe se ela é preta ou parda, pergunta pra polícia. A polícia sabe se você é preto, se é pardo, se é branco. A gente já não pode mais correr atrás de um ônibus, porque a gente tá atrasada, porque tá correndo. “Opa, tem alguma coisa, chama a polícia que é ladrão...”. A gente é estigmatizado e isso é um racismo institucional.
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"No caso do racismo, quando nós temos um juiz branco ele não sente a dor do negro. As indenizações são pequenas, mas está avançando"
Márcia, de que forma a educação pode contribuir para o combate ao racismo e formar uma nova geração mais consciente e antirracista?
Márcia: É que antes de formar os alunos, nós precisamos formar os professores. Essa formação de professores é que está meio complicada. Porque os professores, antigamente, tinham autonomia. E hoje não. Inclusive, muitos ainda querem que as câmeras de celular se voltem para as escolas pra que gravem os professores militantes. O professor só está efetivando uma lei federal que está aí há 22 anos, que ainda, infelizmente, não foi efetivada no Brasil. A lei 10.639 diz que é obrigatório em todas as escolas públicas ou particulares, de ensino fundamental até o ensino médio, que a história da África e a história brasileira sejam contadas. Essas pessoas que vieram escravizadas, muitas delas eram reis, eram príncipes, súditos daqueles reinados. Em 2023, o rei de Angola, Tchongolola Tchongonga Ekuikui VI, esteve no Brasil e a história foi contada para nós novamente. Essa lei é importante pra mostrar quem somos nós, qual é a nossa origem. Infelizmente, não está sendo efetivada de forma regular em Itajaí.
"A gente costuma brincar se a pessoa não sabe se ela é preta ou parda, pergunta pra polícia. A polícia sabe se você é preto, se é pardo, se é branco"
Como está a relação do Conegi com a secretaria de Educação e a pasta da Diversidade Étnico-Racial? Existe algum planejamento específico para a aplicação da lei 10.639 nas escolas?
Márcia: Nós tivemos diversos supervisores desta pasta da Educação dentro do Conegi. Com a saída da Regina, entrou outra pessoa e ela ainda não está efetivamente como conselheira. Conversei com essa pessoa no início de outubro, por conta das denúncias do racismo nas escolas, pedi sobre as kizombas, que é o momento de culminância de todas as atividades que nós fizemos durante o ano, que a escola aplicou com os seus alunos. Nós fizemos a programação das escolas para complementar a campanha “Itajaí Sem Racismo”, mas não tive resposta ainda. [E como é que está sendo a campanha “Itajaí Sem Racismo”?] O Conegi está trabalhando muito. Nós temos diversas entidades do movimento negro. Eu comecei no dia 4 indo no Marcílio Dias, fazendo uma palestra com os meninos da base. Durante todo esse mês está tendo palestras, está tendo eventos. [Uma queixa constante em relação à atual administração é de que há uma certa inexperiência, já que muitas pessoas vêm da iniciativa privada e estão num órgão público pela primeira vez...] As pessoas que deveriam efetivar as políticas públicas estão sendo trocadas. Como ela começa a tomar corpo daquele assunto, tem que ensinar tudo novamente. A gente vai continuar lutando, esperando que as coisas aconteçam e lutando pra que aconteça. Eu creio que a continuação do Itajaí Sem Racismo e outras políticas públicas pro movimento negro é com o diálogo. Isso a gente sabe fazer. [Já foram ouvidas pelo prefeito ou pelo vice?] Já! A Graziella [presidente do Sebastião Lucas] está sempre em contato com o prefeito, principalmente na Virada Afro, que virou lei este ano, que está no calendário do município, esse diálogo é estreito.
"Eu creio que a continuação do Itajaí Sem Racismo e outras políticas públicas pro movimento negro é com o diálogo"
O Clube Sebastião Lucas, símbolo da comunidade negra de Itajaí, precisa de manutenção para evitar um colapso. Como está o processo de restauração?
Márcia: Ele está parado pelo seguinte: tiveram algumas diretorias passadas que deixaram o clube com muitas dívidas. Em maio, o prefeito esteve na Virada e prometeu a anistia dessas dívidas. A gente está em conversa com a procuradoria. Ele autorizou os procuradores a fazerem uma lei para a anistia, mas como tem outros clubes na mesma situação, precisa ser feito um estudo também. A Procuradoria está construindo essa lei pra que a gente consiga essa anistia. Se a gente conseguir essa anistia, a gente vai atrás de todos os outros deputados e senadores e pessoas que nos prometeram verba de emenda pra gente conseguir fazer o restauro do Sebastião Lucas.
"Eu vejo que a saúde da população negra precisa evoluir"
Pensando no futuro: além do Prêmio Simeão e das propostas para reestruturar o Clube Sebastião Lucas, quais são os próximos passos do Conegi e dos movimentos negros da cidade?
Márcia: Saúde. Em 2023 e 2024, a gente atacou a parte da segurança pública, melhorou. A educação, de certa forma, a gente tá conseguindo um diálogo. Eu vejo que a saúde da população negra precisa evoluir. Nós temos doenças específicas e também com maior incidência nas pessoas negras. Nós precisamos que o poder público olhe para a nossa saúde. Principalmente na hora que a pessoa negra chega na unidade básica de saúde, a recepcionista pergunte minimamente qual é a cor dela. “Ah, mas por que que isso é importante?” Porque a partir do momento que eu digo que eu sou preta, que eu sou negra, o médico já tem que ter um outro olhar pra mim. Não porque eu sou especial, mas porque eu tenho doenças específicas. Chegou uma criança negra, preta ou parda, com muitas dores, às vezes não é só dor do crescimento. Às vezes é anemia falciforme. Foi investigar? Vai tratar como anemia normal com ferro, não vai resolver. Captopril, o maior remédio distribuído em Santa Catarina, principalmente em Itajaí, para pressão alta, não funciona pra pessoas pretas. O maior índice de diabetes e de pressão alta é na comunidade negra. Temos um outro problema, a hora do parto. A incidência de mulheres negras que morrem na hora do parto é muito maior. Porque nos dão menos anestesia. Eu creio que esse ano a gente precisa focar na saúde, na saúde pública de Itajaí para fazer essas melhorias.
"O maior índice de diabetes e de pressão alta é na comunidade negra"
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