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Santa Catarina ocupa a 21ª posição em políticas públicas para LGBTQIA+
Falta de assistência nas áreas de saúde e social dificultam a vida de pessoas trans na região de Itajaí e Balneário Camboriú
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Por Joca Baggio
Especial para o DIARINHO
Natalye é uma mulher trans de Navegantes e nunca encontrou alguém capacitado no serviço social do município para lhe orientar com relação à alteração de gênero e nome nos documentos pessoais. Ela aguarda há mais de quatro anos por uma consulta com um endocrinologista na rede municipal de saúde. Com João Lucas não foi diferente. Ele alega que, pelo fato de ser um homem trans, sofre com dificuldades em ter respeito dos servidores públicos. Já Kennedy, de Balneário Camboriú, enfrenta problemas sempre que precisa de um ginecologista. Ele se depara ainda com falhas no sistema informatizado da Secretaria de Saúde e, principalmente, no despreparo das equipes das unidades de saúde e até de médicos pra lidar com pessoas trans.
Esses três casos são uma pequena amostra do que acontece com moradores transgênero no estado. Santa Catarina está na 21ª posição no levantamento do Programa Atenas, que avalia políticas públicas para a população LGBTQIA+. Numa escala de 1 a 5, o Rio de Janeiro lidera o ranking com a nota 4,6. Mato Grosso do Sul (3,9) e Espírito Santo (3,9) aparecem em segundo e terceiro. Santa Catarina obteve nota 2,2. O estudo mostra que o combate à discriminação esbarra na falta de comprometimento dos governos: das 27 unidades da Federação, 19 não têm um programa específico voltado pra esse grupo. O mapeamento também analisou quesitos sobre justiça e cidadania.
O pesquisador e professor do Núcleo de Estudos em Gênero e Saúde da UFSC Rodrigo Moretti diz que, apesar do estado ter diversas ações e movimentos importantes em termos de direitos cidadãos das pessoas LGBT, ainda há muito o que ser feito. “Infelizmente, o panorama de iniciativas ainda é pulverizado, com municípios com grande número de ações e outros sem nenhuma, e a classificação do estado no levantamento reflete isso. Mas também indica caminhos bem interessantes pra o direcionamento das ações,” acredita.
A presidente da Comissão Nacional da Diversidade Sexual e Gênero da OAB e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da OAB/SC, Margareth da Silva Hernandes, diz que até hoje nenhum governo olhou para políticas públicas LGBTQIA+. “Inclusive, o projeto de lei do Conselho Estadual de Direitos LGBTQIA+ está engavetado na Assembleia, porque não passa de jeito nenhum. Trata-se de um processo árduo, difícil e longo em SC, porque precisam mudar muitas cabeças para que o estado possa realmente oferecer a essa população o exercício de sua cidadania”, pontua.
Com relação aos municípios, Margareth diz que até há pouco tempo nenhuma prefeitura tinha coordenadoria de política LGBTQIA+. “A única é Florianópolis, que acabou de criar. Não existe em qualquer outro grande centro, enquanto todos os municípios deveriam ter essa coordenadoria, assim como tem coordenadorias de igualdade racial e da mulher. Esbarramos em governos conservadores, que ainda não olham para essa população”, acrescenta.
Natalye já sofreu transfobia até do serviço social
Natalye Furtado, de 24 anos, já foi vítima de transfobia no dia a dia e também por parte de servidores da Secretaria de Assistência Social de Navegantes. “Me deparei com muita falta de informação, em todas as áreas, principalmente na busca de orientações para a alteração da documentação”, conta.
Natalye conversou com uma assistente social da Saúde, e a profissional não sabia o que é uma cirurgia de readequação de gênero e, quando soube que ela é uma mulher trans, o contexto da conversa mudou. “De queridinha e minha flor, que era como ela estava me tratando, passei a “monstro”", diz.
Natalye ainda esperou por mais de um mês por um primeiro atendimento Secretaria de Saúde, que não lhe ajudou. “Chegaram a me dizer que qualquer informação que eu precisasse com relação à cirurgia, hormonioterapia e outros procedimentos, que eu buscasse em Florianópolis”, conta.
Natalye lembra que também pediu um agendamento com um endocrinologista, para que orientasse com relação aos hormônios, e espera pela consulta há quatro anos. Essa falta de estrutura do serviço público de saúde fez com que ela fizesse como milhares de outras mulheres trans: tomasse os hormônios por conta própria.
Também de Navegantes, João Lucas Serpa, de 24 anos, diz que falta, inclusive, respeito de servidores públicos quando se trata de pessoas trans. “Cheguei a me deparar com servidores que nem sabiam que existem leis que garantem os direitos a pessoas trans. Bastante dificuldade em se tratando de funcionários públicos, principalmente quando estamos fazendo a transição”, relata. Ele conta que ainda tem documentos que não conseguiu mudar, o que seguidamente lhe causa constrangimento. “Infelizmente as leis são feitas, mas a realidade é como se elas não existissem. São muitas burocracias.”
Kennedy Jordan Mendes, de 31 anos, iniciou sua transição há 11 anos e ainda encontra dificuldades na rede municipal de saúde de BC para o acompanhamento ginecológico. “Há mais de cinco anos eu consulto como o mesmo médico, clínico geral, que já conhece meu caso e todas as suas especificidades. Quando precisa, ele me encaminha para outra especialidade e é comum eu ouvir dos médicos, principalmente ginecologistas, que quando eles estudaram não tiveram nenhuma cadeira que englobasse a saúde de pessoas transgênero”, diz. Kennedy teve também problemas com o sistema de informática, desenvolvido para pessoas cisgênero.
Outro caso que mostra o despreparo dos profissionais da assistência social de BC foi o de J.C.B., de 18 anos. Ela conta que procurou informações para alterar sua documentação e apoio psicológico no do processo de transição.
“A pessoa que me recebeu disse que eu ainda sou muito nova para decidir uma coisa dessas e sugeriu que eu me evangelizasse. Jamais voltei lá”, conta.
Itajaí sai na frente com políticas públicas para os LGBTQIA+
Entre os municípios da região, Itajaí saiu na frente. A Secretaria de Saúde criou a Pasta das Políticas Afirmativas, com ações interdisciplinares de saúde, com medidas de promoção, prevenção e recuperação à saúde da população negra, indígena, quilombola, estrangeira e da população LGBTQIA+.
“Outro projeto, ainda em fase burocrática, é a implantação de ambulatório especializado para oferecer atendimento multidisciplinar e acolhimento adequado à população trans, inclusive, com acompanhamento hormonal, incluindo a prescrição, monitoramento e ajustes necessários para garantir a saúde e o bem-estar dessas pessoas durante o processo de transição”, informa a secretaria de Saúde.
O município também criou uma Comissão de Enfrentamento à Violência contra a população LGBTQIA+ e desenvolve um programa de capacitação permanente dos profissionais. Essa capacitação aborda questões relacionadas à diversidade de gênero e orientação sexual, direitos da população trans e atendimento universal e integral a essa comunidade.
Já a Secretaria de Promoção da Cidadania tem em sua estrutura uma diretoria de relações institucionais e temáticas, que, entre outros grupos, atende a comunidade LGBTQIA+. “Temos ainda o atendimento específico para a comunidade LGBTQIA+, com a assistente social, que faz os encaminhamentos necessários de acordo com as situações apresentadas, envolvendo ainda outras secretarias”, diz a secretária Hilda Deola. Em médio prazo, é estudada a criação do Conselho Municipal de Políticas LGBTQIA+.
Na área de assistência social a realidade é bem diferente. A secretária Neusa Geraldi diz que Itajaí dispõe da casa de passagem e um abrigo (que são locais para acolher pessoas em situação de rua), e os serviços disponibilizados pelos Cras e Crea. No entanto, nenhum programa específico para a comunidade LGBTQIA+. “O nosso trabalho é no sentido de garantir os direitos e proteção a todo cidadão, independentemente da escolha sexual dele ou não,” justifica Neusa.
Ambulatório de identidade de gênero da Univali é referência na região
A Universidade do Vale do Itajaí (Univali) disponibiliza acompanhamento especializado nas áreas de medicina, fonoaudiologia e psicologia para pessoas que estão em fase de transição de gênero. E o nome, por si só, já é acolhedor: Ambulatório Multiprofissional de Identidade de Gênero da Univali (Amigu). As primeiras articulações aconteceram em 2021, mas o projeto saiu do papel somente em agosto de 2022.
“Nosso objetivo principal é promover um processo transexualizador seguro, onde as pessoas podem fazer uso de medicamentos e realizar tratamentos com respaldo profissional. Infelizmente ainda não temos convênios para cirurgias e nem para solicitação de medicamentos via SUS, mas estamos trabalhando para alcançar esse objetivo”, explica o médico da família e professor Wellington Sanchez Abdou.
As atividades acontecem nas tardes das segundas-feiras e as pessoas são atendidas por acadêmicos dos três cursos, sob a coordenação de Wellington. No entanto, sempre que surge alguma demanda que não possa ser resolvida no ambulatório, é buscado um profissional parceiro.
“Optamos por fazer um serviço de portas abertas, exatamente pela questão de muitos pacientes não se sentirem confortáveis em outros serviços de saúde”, pontua. Hoje, a demanda é grande devido à dificuldade do acesso nos municípios da região. O Amigu funciona no bloco F7, junto com os demais ambulatórios da Univali.
Wellington concorda que há carência de políticas públicas para as pessoas transgênero. “Percebo mais uma carência com relação ao ‘colocar em prática’, uma vez que muitos profissionais da rede não estão preparados para entender e acolher as demandas da população LGBTQIAP+ em geral. Precisamos fomentar mais a questão das capacitações entre todos os funcionários”, destaca. Para ele, a educação é a principal forma de mudar essa realidade. “E é isso que estamos promovendo com o Amigu. Juntamos a força de vontade em ajudar as pessoas, com a necessidade de ensinar que a diversidade é algo natural,” completa Welligton.
Balneário Camboriú e Navegantes não têm programas específicos
A Secretaria de Saúde de Balneário Camboriú confirma que não oferece programas voltados à comunidade LGBTQIA+, mas diz que tem isso como meta. A pauta foi levantada no Conselho Municipal de Saúde e está em fase de discussão, planejamento e avaliação da possibilidade de recursos. A orientação, segundo a secretaria, é que os profissionais das unidades de saúde usem o nome social, bem como o gênero que a pessoa se identifica.
Não há programas de capacitação para os servidores e os atendimentos ocorrem como a qualquer paciente que procure uma unidade de saúde. Procurada, a Secretaria de Desenvolvimento e Inclusão Social não informou se há programas específicos para a comunidade LGBTQIA+.
Em Navegantes, o secretário da Saúde Pablo Sebastian Velho diz que o Ministério da Saúde desenvolveu algumas iniciativas, como a Política Nacional de Saúde Integral LGBT e o Programa Brasil Sem Homofobia, que são aplicados nas secretarias de Saúde municipais. “Em Navegantes trazemos ainda o fortalecimento à prevenção de ISTs, que também têm como público-alvo a comunidade LGBTQIA+”, acrescenta Pablo.
O secretário diz que a pasta vem desenvolvendo ações de capacitação e treinamento para os profissionais de saúde sobre a abordagem adequada à população em geral, mas não com olhar específico à comunidade LGBTQIA+. Com relação a programas para pessoas transgênero, Pablo diz que na região apenas a Univali oferta ambulatório específico de atendimento integral à saúde de pessoas trans. “Em casos específicos fazemos os encaminhamentos para o ambulatório da Univali”, acrescenta.
Na área social, a secretária Juliana Pinto confirma que ainda não existe nenhum programa específico, apenas orientações e encaminhamentos, quando necessário, por meio dos Cras e Creas.