Matérias | Entrevistão


Valéria Ferreira

"A internet liberou todo tipo de conhecimento, inclusive de violência, de racismo, de nazismo, de fascismo”

Doutora em Psicologia da Educação

Franciele Marcon [fran@diarinho.com.br]

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A tragédia do atentado à creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, deixou em pânico famílias com filhos em idade escolar. Quatro crianças, com idades entre 4 a 7 anos, foram assassinadas por um homem que cometeu o massacre e depois se entregou à Polícia Militar. A partir do ataque, várias fake news passaram a surgir nas redes sociais e potencializaram a sensação de medo e insegurança. Prefeituras e o governo do estado buscam soluções emergenciais para tentar tranquilizar a comunidade. Já os pais, em vários municípios, fizeram manifestações, pressionando o executivo para a contratação de guarda armada. Para falar sobre o tema, a jornalista Franciele Marcon entrevistou a doutora em Psicologia da Educação Valéria Ferreira. A professora analisou o contexto que envolve o atentado, as medidas emergenciais anunciadas e fez um alerta: a longo prazo as soluções precisam ser menos superficiais. Para Valéria, é preciso investir na redução da desigualdade social, em educação e em políticas públicas que valorizem a escola como um todo, pois nela acontece a convivência comunitária. Também é preciso identificar e punir com rigor quem está disseminando ódio e ameaças na internet. A entrevista completa, em vídeo e áudio, você confere no portal DIARINHO.net e em nossas redes sociais. As imagens são de Fabrício Pitella.



 

DIARINHO – Por que Santa Catarina, que tem um dos melhores IDHs do Brasil, tem tido uma crescente em casos de feminicídio, violência doméstica e agora culminou com esse ataque a crianças em uma creche? Deve-se analisar a violência no contexto geral ou esse caso da creche não tem parâmetro com outros crimes?


Valéria: Tem. Tudo tem uma ligação. Lógico que é um reflexo do que vem acontecendo no mundo inteiro, um mundo que está em guerra. A violência tá crescendo. No Brasil, nos últimos anos, a violência cresceu muito. Violência contra as mulheres, violência contra as crianças, cresceu a violência de cunho racista, de cunho de etnia. Isso as pesquisas apontam que vem crescendo em todo o Brasil. Santa Catarina é reflexo disso. Alguns especialistas dizem que por conta da pandemia aumentou, porque teve muitos transtornos emocionais, mentais, então pessoas que já eram frágeis na questão emocional, mental, piorou. Isso também tem um acréscimo nessa violência. A questão da perda emocional de pessoas, a questão do isolamento social, a questão das crianças que sofreram violência dentro de casa, passaram fome, dificuldade para estudar. Ninguém saiu imune à pandemia. Outro fator que vem se agravando no Brasil inteiro e em Santa Catarina, sobretudo, é a questão da polarização política. Essa polarização divide a opinião das pessoas e foi para um nível de agressividade. Depois das eleições nós tivemos manifestações bem agressivas, com fechamento da BR. São coisas que vão banalizando a violência. Vai ficando banal. Ninguém mais estranha. Ninguém não, mas a maioria das pessoas vai se acostumando com isso, naturaliza. Outras vão ficando com muito medo. As duas coisas são ruins. 

 


O papel da escola é socializar, é educar, é ter o espírito comunitário”

 

DIARINHO – Nos dois atentados a escolas cometidos no estado os autores eram homens com menos de 25 anos. O que este perfil nos mostra?

Valéria: O perfil mostra um desequilíbrio emocional e mental muito grande de uma geração que vem sofrendo violência mundial, vem vindo na banalização. Outro fator é o uso da internet. Quer dizer, a internet liberou, socializou, todo tipo de conhecimento, inclusive de violência, de racismo, de nazismo, de fascismo. Isso é bem complicado. Eu estava vendo algumas ações da Polícia Federal relativas à deep web, que é uma internet obscura, meio secreta, que divulga muito material. O jovem está muito à mercê da internet, de todo esse movimento de socialização e de procurar um grupo, de se sentir parte de um grupo, e acaba, muitas vezes, por desolamento social, por problemas familiares... Nada justifica, mas isso para quem já tem um desvio emocional e mental, um transtorno mental, é uma porta aberta, porque grupos divulgam essa violência e incentivam e a planejam.

DIARINHO – A escola simbolicamente vinha sendo atacada nos últimos anos com interferências na sua dinâmica, com políticos tentando impedir que se discutisse questões cruciais na vida em sociedade, como violência, sexualidade, política, alegando que a escola teria que ser “sem partido”. Como retomar a escola como um espaço livre pra debates e pra aceitação das diferenças do viver em comunidade?


Valéria: Dentro dessa manifestação violenta contra a escola e contra qualquer instituição que é detentora da paz, da harmonia, que vai fazer a educação, os ataques se voltam sobre ela. O papel da escola é socializar, é educar, é ter o espírito comunitário. A escola é um espaço de encontro comunitário. Ela fica frágil. Acaba sendo essas políticas que vêm sendo desenvolvidas, que você citou, contra a escola. Principalmente, que não discuta a diferença, que tenha uma hegemonia na educação. Isso tudo é muito ruim para a escola. A gente começa a ter um movimento, uma reação dos professores, para que isso volte a acontecer, para que a escola tenha esse papel de socialização e de aceitação do outro, principalmente. Aceitar o outro é discutir a diferença, é discutir a diversidade social, sobretudo hoje em dia. Quando a escola é vigiada o tempo inteiro para que essas discussões não sejam feitas, que os professores não mediem essas discussões, a escola fica fragilizada. 

 

O medo é um sistema de proteção pessoal, mas ele não pode ser exagerado a ponto de virar pânico, angústia, síndrome do pânico, ansiedade, e muito menos ódio e mais violência

 

DIARINHO – O governador Jorginho Mello anunciou que vai implantar vigilância armada em todas as escolas estaduais. Os municípios da região anunciaram também a implantação de guardas armados. A resposta à violência veio com demonstração de força e da possibilidade de mais violência. Isso vai resolver novos ataques e a sensação de medo coletivo que se instalou?


Valéria: Não, não diminui… Tudo aumenta. Eu entendo até a questão do estado, dos municípios, de tentar fazer uma coisa emergencial para acalmar os ânimos e dar tranquilidade. Isso porque geralmente, quando acontece um ataque desse, outras pessoas que têm transtornos acabam tendo ideias também. Mas a longo prazo nós temos que trabalhar na educação, no treinamento das professoras para situações de emergência. De emergência em geral a gente não é treinado na escola. Para situação de fogo, de qualquer outra emergência, ter lugares de fuga para isso. Não que você vai educar para a violência, mas numa situação qualquer de emergência, o que devemos fazer? A equipe precisa ser treinada. 

DIARINHO – O estado e os municípios sequer dão conta de manter as estruturas físicas das escolas adequadas ou de ter o número de professores e de vagas suficientes para atender a demanda. O custo da vigilância armada das escolas estaduais chegaria a R$ 70 milhões por ano. Como analisar essas prioridades do governo?

Valéria: Isso é muito ruim para a educação. Muito ruim. Porque você vai deixar de investir em outras coisas que a escola está precisando, em manutenção principalmente. Nas escolas estaduais, sobretudo. Porque o município cuida do ensino fundamental e da educação infantil. Também tem que cuidar melhor, mas é um pouco melhor ainda do que a manutenção das escolas estaduais. E o dinheiro vai para outra pasta, vamos dizer assim, com outras preocupações. Isso é ruim. Lógico que é preciso ser feito, mas é uma perda muito grande para a sociedade em geral.

 

“No Brasil, a violência cresceu. Violência contra as mulheres, contra as crianças, de cunho racista, de cunho de etnia”

 

DIARINHO – Os EUA gastam bilhões em sistemas de proteção e vigilância de escolas, mas esse investimento não evita os ataques que aumentam tanto quanto as medidas repressivas. Apesar da falta de evidência de que agentes armados e a ampliação do uso de câmeras possam reduzir atentados, porque essas medidas aparecem como “soluções mágicas” em SC?

Valéria: Não, não é solução mágica. Esse tipo, o perfil dessas pessoas que atacam escolas ou atacam qualquer lugar público, eles estudam. Eles estudam o comportamento, estudam como entrar. E isso a internet colabora muito, porque ensina esse tipo de coisa. Essa internet do submundo. Eu acho que a gente precisa de medidas sociais a longo prazo contra esse tipo de manifestação de violência, quanto dessa propagação de ideias nazistas, fascistas, de violência que a gente está observando de um período para cá. 

DIARINHO – O botão do pânico ligado diretamente com as centrais da polícia é uma medida inteligente?

Valéria: Não sei como é, de fato, porque a gente nunca teve. Mas eu creio que é uma coisa que pode dar um sossego para a equipe escolar. A gente vai ver se vai funcionar, de fato, na hora que precisar. E vai ter que ter um treinamento. Por que assim… em qual momento eu posso apertar aquele botão? Qual a dificuldade que eu tenho aqui? Porque também não posso fazer isso para qualquer coisa. Mas eu acho que se tiver um bom treino, uma boa discussão e que realmente funcione na hora de um aperto, dá uma certa tranquilidade para a equipe. 

 

“Nesse mundo digital, midiático, nós não temos regras ainda”

 

DIARINHO – A violência nas escolas reflete a violência na própria sociedade. Tratar os atentados apenas como questão de segurança pública é negar que o Brasil negligencia o enfrentamento de problemas sociais, raciais e outros complexos que nos tornam uma das sociedades mais desiguais do mundo. Como resolver isso?

Valéria: Você precisa ter políticas públicas sociais. A gente precisa cuidar dessa faixa de pessoas que são desprivilegiadas socialmente. Cuidar de todos, fazer essa distribuição de renda mais equitativa pra que isso vá se resolvendo a longo prazo. A educação não pode ter sozinha essa responsabilidade. As políticas sociais e os políticos ficam só botando a culpa na escola. A gente já sabe, também, por pesquisas, que é uma estratégia política ficar culpando a escola pública, os professores, ficar só divulgando os dados de fracasso escolar, para tentar desmobilizar a escola e todo o orçamento que é feito na escola. [Mas a quem interessa uma sociedade pobre e burra?] Para muita gente! Muita gente! Primeiro, às grandes instituições de financiamento externo. A gente sabe que eles têm muita influência sobre a nossa educação, os órgãos internacionais. Todos querem palpitar como é que deve ser a nossa educação. O Brasil é um país rico. Mas como se distribui a riqueza? Todo mundo quer uma fatia disso. O mundo inteiro quer uma fatia. Aqui dentro existe uma elite que quer uma fatia. Se você for pensar o quanto a escola e quanto o orçamento escolar é visado… Só a gente ver o comércio que se tem, o mercado que se tem ao redor de uma escola. Tem empresas que vendem formação continuada, vendem material didático. Isso em escala brasileira. Quando eu vendo um livro, não vendo uma coleção de livros. Eu vendo milhões de livros. Material didático. É pessoa criando teorias e vendendo para a escola. Compra lá o kit para ensinar a criança a ser boazinha. Eu vendo o kit. A gente fala kit porque vem o kit, vem material, formação continuada e, às vezes, eles vendem currículo, assessoria para a escola. Vendem computador, tecnologia. A gente teve um período em que as grandes empresas mundiais de tecnologia desovavam tecnologia velha, obsoleta, para as escolas. Nós temos agora, em toda nossa região, e em quase todo o Brasil, uma terceirização do zero a três anos. O governo compra vagas em escolas particulares. Pensa: tem gente que cria a escola, monta a escola e só tem alunos deste convênio. Alimentação escolar. É tanta gente dando palpite nas escolas e querendo essa fatia desse orçamento... A gente tem que estar muito atento. E a violência, infelizmente, também abre esse mercado. Abre um mercado para o armamento, abre mercado para a vigilância. A gente chama da “indústria do medo”, o que não é bom para ninguém. Embora necessário em casos pontuais, mas a longo prazo tem que se pensar em outras soluções.

DIARINHO – Um movimento contra o Twitter ganhou as discussões nas redes após um representante da empresa afirmar que perfis com fotos de assassinos e de apoiadores de massacres não violam os termos do uso da plataforma. Isso traz à tona a necessidade de regulamentação das redes sociais?

Valéria: Com certeza. Nesse mundo digital, midiático, nós não temos regras ainda. As situações vão ocorrendo para depois se criarem as regras. Está na hora de ter políticas sobre isso. Essas empresas podem tudo, fazem tudo. O ódio cresceu. Não é que não existisse, as pessoas agora se sentem à vontade. À vontade para criticar o outro, para odiar, para publicar opiniões na internet. Se a gente quer uma educação para a paz, isso precisa ser revisto. O Twitter espanta porque ele é uma ferramenta que todos usam. Como se vai fechar os olhos para isso?

DIARINHO – Como os pais devem orientar os filhos sobre os riscos na escola?

Valéria: Tem que tomar o maior cuidado porque a gente entra em pânico quando é mãe, pai, qualquer pessoa que tenha crianças… Tomar o maior cuidado para não educar para o medo. Ao mesmo tempo, não podemos deixá-los frágeis. A gente não pode educar para o medo senão teremos uma série de pessoas neuróticas. O medo é uma situação que imobiliza, afasta e traz o ódio. Quando eu tenho medo, eu vou ter medo do que? Do diferente!  O medo sempre é um sistema nosso de proteção pessoal, mas ele não pode ser exagerado a ponto de virar pânico, angústia, síndrome do pânico, ansiedade, e muito menos ódio e mais violência. Os pais têm que tomar muito cuidado e refletir. Proteção sim, conversar com a criança sim, mas não dar o medo. A conversa depende muito da idade, até onde a criança precisa saber e te pergunta. Tem que falar a verdade, ser sincero, mas não prolongar aquela conversa a ponto de chegar no medo ou ao ódio, porque a gente vai passando os nossos preconceitos para a criança. Isso é muito ruim e vai desenvolvendo a violência dentro da escola, contribuindo para bullying… 

DIARINHO – A imprensa vetou imagens e o nomedo autor do massacre de Blumenau. Isso evita a glamourização deste tipo de crime?

Valéria: Não tenho certeza sobre isso, se evita. Mas vamos pensar: para que ver a cara dele nesse caso específico?! É uma pessoa que tem que ser isolada mesmo. Agora se isso vai desestimular ou estimula, não sei. Mas foi uma boa ação. Tenho certeza que precisamos parar o sensacionalismo na TV. A imprensa tem papel superimportante de acalmar, de dizer e registrar o que foi feito, mas de uma maneira que não cause mais medo e mais ódio. 

DIARINHO – A explosão de casos de células nazistas em Santa Catarina também chama atenção pra um discurso de ódio e de apagamento do outro, “o diferente”. O estado não enfrentou essa questão com seriedade. Como conter o avanço deste tipo de crime?

Valéria: Difícil. Tem que ter uma política e uma investigação séria, se a gente quer realmente frear. É um desejo de todos não ter mais violência, então porque vamos deixar ideias violentas, de crimes contra o outro, serem disseminadas? Pode ser que em Santa Catarina sempre teve isso, só que agora isso está sendo disseminado, naturalizado. Eu fico preocupada com os jovens, as crianças, quando elas começam a perder admiração por tudo e perceber que a violência é naturalizada. Por que não ser violento? Por que não pegar o diferente na raiz e tirar da sociedade como o nazismo fez e ter uma ideia só?! Por que não fazer essa limpeza social? São ideias que podem passar na cabeça de alguém que não tem uma reflexão mais profunda, para quem tem transtorno mental é um prato cheio. Acaba banalizando. […] Se a gente naturaliza essas coisas vamos acabar no bangue-bangue. Volta para a Idade Média, barbárie. Temos que confiar na lei. Os países que têm menos índices de violência têm mais justiça social. Aqui querem acabar com a violência, mas não querem justiça social. Para a gente acabar com a raiz do negócio, tem que ter justiça social. Tem que se ter lei e tem que se ter alguém que zele por essas leis. Temos que acreditar nas instituições, senão vai ser cada um por si e quem tiver mais força, mais dinheiro, e estiver mais armado, como foram as ideias propagadas aí, vai dominar. É uma questão de poder. […] É inadmissível que a gente tenha propagação dessas ideias. Eu posso educar para a paz e posso educar para a violência. Eu posso educar para uma sociedade mais harmônica e justa socialmente, ou posso educar para a exclusão, para o caos, para a violência. E tem uma indústria armada atrás que adora isso tudo.

 

Raio X

Nome: Valéria da Silva Ferreira

Natural: Joaçaba

Idade: 56 anos

Estado civil: divorciada

Filhos: um

Formação acadêmica: graduação em Pedagogia pela Universidade do Vale do Itajaí, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná e doutorado em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.

Experiência profissional: professora de educação infantil do colégio de Aplicação da Univali, professora e pesquisadora do curso de Pedagogia da Univali, coordenou o PIBID da área de Educação Infantil e da Residência Pedagógica. Coordenou o Fórum Sul de coordenadores de programas de Educação de 2012 a 2014. Foi editora da Revista Contrapontos por 12 anos. É líder do Grupo de  Pesquisa Contextos da Educação da Criança (GPCEC). É pesquisadora sênior do Programa de Pós-graduação em Educação da Univali.

 




Comentários:

JORGE66 Reis

15/04/2023 09:58

Na Internet vc busca o que quer buscar !

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