febre entre jovens
Uso de Cigarros eletrônicos acende alerta
Mesmo com venda proibida, dispositivo já alcança um terço dos fumantes. Estudantes são maioria dos usuários
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
O uso de cigarros eletrônicos por adolescentes nas escolas já é realidade na região de Itajaí e gera preocupação de pais, professores e profissionais de saúde. O problema avança em meio ao debate sobre a regulamentação dos produtos, proibidos no país desde 2009, à falta de fiscalização contra o comércio ilegal e ao alerta de médicos de que os aparelhos fazem, sim, mal à saúde, com efeitos até mais graves que cigarros comuns.
A moda ficou evidente com o fim das restrições da pandemia e a volta das aulas presenciais nas escolas. Pesquisa inédita, sobre os impactos da pandemia na saúde da população, mostra que um a cada cinco jovens usa cigarro eletrônico. Os novos dados, também, apontam que quase um terço dos fumantes já são de aparelhos eletrônicos.
Os chamados Dispositivos Eletrônicos de Fumar (DEFs) têm venda, importação e propaganda proibidas por resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mesmo assim, eles são facilmente encontrados em bares, tabacarias e camelôs, além das redes sociais. Na região, tem até loja no iFood vendendo os artigos, que viraram febre também em festas e clubes.
Nas escolas, os dispositivos são usados por alunos em banheiros e corredores e levados até pra sala de aula. Eles podem ser tão pequenos quanto um pendrive, o que facilita serem escondidos ou passarem despercebidos dos adultos. Há relatos de que algumas escolas da região tentam abafar os casos, enquanto outras já discutem ações internamente.
Para pais de alunos que descobriram os filhos fumando, a situação já estaria alastrada, considerando o que os próprios estudantes relatam. O DIARINHO ouviu a mãe de uma aluna de 15 anos de um colégio particular de Itajaí. A garota estava num grupo de 10 alunos, entre meninos e meninas, flagrado fumando no corredor da instituição, durante o recreio, em abril.
“Eu descobri que o cigarro eletrônico, que eles estavam fumando, foi uma menina que fez. Era artesanal”, relatou a mãe. O aparelho teria sido feito a partir de um pen-drive velho, adaptado pra virar um “pod descartável”, a opção de cigarro eletrônico mais prática e mais barata, a partir de R$ 30 no mercado.
Os alunos receberam uma advertência por escrito pra levar pros pais em casa. No caso da estudante em questão, ela falsificou a assinatura da mãe no documento pra não ser descoberta, mesma estratégia usada por duas colegas. Mas, ao entregar a advertência na coordenação da escola, a menina demonstrou nervosismo. Era sinal de que alguma coisa estava errada. A escola ligou para a mãe, que relatou não ter assinado nada e que não estava a par da situação.
“A escola foi bem receptiva e orientou [a aluna] de uma forma muito legal. E foi legal comigo também, como mãe”, ressaltou, destacando que o colégio colocou um psicólogo à disposição. Na conversa em casa, a estudante disse que usou o cigarro porque estava se “enturmando”.
“Ela era nova na escola e queria se enturmar. E, se ela falasse não, ela não iria ser aceita no grupo. Foi a justificativa que ela me deu”, lembra a mãe. Ela disse que a filha já havia feito uso do cigarro eletrônico antes, numa festa na Praia Brava, no final do ano passado.
Na ocasião, a própria garota contou pra mãe que foi pesquisar sobre o assunto na internet e orientou a filha de que o uso não seria saudável. A situação seguiu até o episódio neste ano. “Acho que todos os colegas da minha filha fumam ou já fumaram o pod”, comentou.
Necessidade de “pertencimento”
A psicóloga Taísa da Silva Cassol explica que o uso entre jovens passa pela necessidade de identificação com o grupo, surgida na adolescência. “Nessa fase, tem muito aquela necessidade de fazer parte, de não ser o diferente. Aquela coisa do ‘eu sou legal’, ‘eu não sou careta’, que sempre é uma porta para qualquer tipo de droga”, observa.
No caso do cigarro eletrônico, ela avalia que o grande problema, como no uso do narguilé, é a falsa ideia que o produto não faz mal e que não é igual ao cigarro normal. O aspecto “modernoso”, a facilidade de usar, o cheiro agradável, as cores, os sabores, entre outros, tornam o produto, ainda, mais atrativo e popular.
“Nessa ideia de pertencimento, muitas vezes, o jovem se deixa levar”, considera. Apesar do uso pra ser da “modinha” e fazer parte do grupo, Taísa destaca que o produto pode viciar mais e mais rápido que o cigarro normal e provocar síndrome de abstinência piores, bem como aumentar a chance de vícios em outras drogas.
Além disso, o uso pode estar servindo como válvula de escape para alguns transtornos, como crise de ansiedade e depressão. Para combater o avanço do cigarro eletrônico entre os jovens, a especialista ressalta que a principal forma é a informação, que ela avalia como pouco difundida na região.
“O que está difundido é que não faz mal. Então, acho que, em primeiro lugar, o esclarecimento é o importante, tanto no trabalho da escola junto aos alunos, como junto aos pais”, diz. No ambiente escolar, Taísa alerta que o uso tem que realmente ser controlado, porque a novidade acaba se espalhando para os mais novos e até crianças.
“É importante esse trabalho conjunto entre escola e família. Se a família identificar, levar isso pra escola. Se a escola identificar, levar isso pra família e trabalhar junto”, defende.
Para os pais que descobriram que o filho está fumando cigarro eletrônico, ela orienta uma primeira abordagem no sentido de esclarecer, buscando a conscientização. Medidas mais rígidas, como punições, devem ser deixadas para um segundo momento, se necessário.
Riscos de câncer, infarto e derrame
O alerta de médicos rebate o argumento da indústria de que o cigarro eletrônico não faz mal à saúde e até ajuda quem quer parar de fumar. Os produtos têm nomes como pods, vapes, e-cigarretes e vaporizadores, mas todos são enquadrados como DEFs e, segundo especialistas, trazem malefícios até piores que os cigarros comuns.
“As mesmas doenças do fumo de papel você vai encontrar, a grande maioria, nas doenças do cigarro eletrônico”, diz o pneumologista Jorge Luiz Zimmermann. Na lista, estão câncer de pulmão e de bexiga, doenças cardiovasculares, como infarto, e o derrame.
O médico destaca que os aparelhos têm, ao menos, 80 aditivos, entre eles, substâncias cancerígenas, que se juntam à nicotina, o princípio ativo que causa a dependência. Ele informa que, só de aditivos aromatizantes, são mais de 16 mil no mercado, incluindo chocolate, menta e hortelã.
Toda essa mistura, além de subprodutos desconhecidos gerados pelo aquecimento da nicotina, potencializam os riscos à saúde. Doenças pulmonares, como bronquite, enfisema e câncer, com pico de ocorrência após 40-50 anos de fumo, podem aparecer mais cedo para os jovens que usam o cigarro eletrônico.
“Os trabalhos recentes mostram que os efeitos são mais rápidos que os cigarros convencionais”, afirma Jorge. Ele ressalta que o poder viciante é igual devido à nicotina, mas a absorção imediata da substância no organismo eleva o risco de infarto e derrame. Outro risco imediato é de explosões e queimaduras, já ocorridas.
O cigarro eletrônico também ganhou uma doença específica ligada ao uso do aparelho. A Evali, sigla em inglês para doença respiratória aguda grave relacionada aos vapes, hospitalizou 2802 jovens e provocou 68 mortes nos Estados Unidos, em 2019. No Brasil, até 2020, a Anvisa tinha notificado sete casos de Evali.
A pneumologista Renata Viana citou pesquisas que apontam que os dispositivos também elevam o risco de asma em adolescentes e que eles podem gerar maior dependência da nicotina quanto mais jovem é o usuário. Ela informa que, além dos perigos aos fumantes, há risco, já comprovado, para as pessoas que não usam os aparelhos, mas estão no mesmo ambiente dos usuários.
A médica alerta que os vapes já estão sendo “porta de entrada” para o cigarro normal e outras drogas. Ela relata que o uso entre os jovens tem se alastrado como epidemia, inclusive, na região. “Os pais não têm ideia dos riscos e nem imaginam que esses dispositivos já estão na maior parte das escolas aqui da região também”, diz.
Segundo conta, os aparelhos estão até mesmo nas salas de aulas, sem que os professores percebam. “Tenho ouvido semanalmente relatos de pais, ou de professores, ou alunos, sobre uso em crianças de 12 anos, por exemplo, que não têm ideia do que estão fazendo”, comenta.
Renata diz que as escolas não devem abafar os casos, mas chamar os pais pra reuniões e discutir o problema. “A melhor alternativa é a educação em saúde, através da união de pais, escolas, profissionais de saúde, mídia e órgãos públicos para disseminar a informação correta sobre essa moda extremamente preocupante”, completa.
Operação mira o comércio ilegal
O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), em parceria com os Procons, Vigilância Sanitária e Polícia Civil, toca uma operação no estado para combater o comércio ilegal de cigarros eletrônicos e fazer valer a proibição da Anvisa.
Em Balneário Camboriú, onde a operação já rolou, foram fiscalizados sete estabelecimentos. O total de produtos apreendidos nos locais, entre cigarros eletrônicos, essências e acessórios, foi de 3115 itens.
O Procon autuou os comércios pelas infrações de perigo à saúde e segurança dos consumidores, e venda de produtos em desacordo com as normas. As empresas são punidas com multa e respondem processo administrativo.
A fiscalização está programada pra ocorrer, também, em Itajaí, onde pods, vapes e acessórios são vendidos livremente. Segundo o MP, a proposta é que as ações conjuntas sejam constantes.
O que é um cigarro eletrônico?
Os dispositivos funcionam por vaporização, após o líquido com nicotina ser aquecido por uma resistência alimentada por uma bateria. A ativação pode ser por um botão ou pela tragada. Com o calor, o líquido vira vapor, que sai pela ponta do aparelho, e é inalado pelo usuário, caindo na corrente sanguínea.
Uma carga com 3% a 5% de nicotina equivale a fumar de 10 a 15 cigarros normais por dia, conforme o Conselho Federal de Medicina (CFM). Uma série de aditivos pode compor o líquido, como álcool, água e glicerina, além de aromatizantes e produtos cancerígenos como o benzeno. Outros tipos de aparelho usam a vaporização pra aquecer tabaco ou maconha.
Os pods são vaporizadores menores e mais baratos. Há versões descartáveis, com limites de 300 até 3 mil tragadas, e os recarregáveis, que permitem o reabastecimento. Os dispositivos mais potentes e com baterias mais duradouras podem custar mais de R$ 600.
Indústria quer regulamentar
A proibição do cigarro eletrônico pela Anvisa levou em conta, em 2009, a falta de informações sobre o produto. O órgão já fez audiências, consultas e oficinas públicas. Em abril, a Anvisa abriu consulta técnica pra receber evidências científicas. Pesquisas, estudos e outras contribuições podem ser mandadas até 16 de junho.
O relatório preliminar é por manter a proibição, aprimorando as regras e reforçando a fiscalização. Conforme os novos dados, porém, há chance de o produto ser liberado. Atualmente, os aparelhos são fabricados, importados e vendidos de forma clandestina. Segundo pesquisa do Datafolha, em 2021, o país tem 4,8 milhões de usuários de DEFs.
Dados da indústria dizem que a legalização geraria R$ 8 bilhões de impostos por ano, além de 170 mil empregos. Para o setor, os produtos são seguros e não funcionam como “entrada” ao tabagismo. Um manifesto das principais entidades médicas do país defende a proibição dos dispositivos.
Elas apresentaram à Anvisa estudos que comprovam os riscos e prejuízos à saúde, rebatendo as alegações de fabricantes. A Fiocruz também lançou campanha de alerta à população. Em Itajaí, a Univali fará um evento, no dia 30, pra conscientização da comunidade acadêmica.