Sexta-feira Santa
Moradora mantém tradição da cachaça com milome
Ritual em Barra Velha simboliza o sofrimento de Cristo e mistura bebida com cipó usado para envenenar flechas
Juvan Neto [editores@diarinho.com.br]
A moradora Eleonora Martim, de Barra Velha, resolveu manter um dos hábitos mais antigos dos fiéis e devotos do Cristianismo, mesmo após a morte do seu esposo, Antônio Martim, em julho do ano passado: a produção e consumo da cachaça com cipó-milome, nas primeiras horas da manhã da Sexta-feira Santa – ritual que ocorre em Itajuba. E essa tradição de bebida ritualística não é a única na cidade.
Eleonora produziu a cachaça com milome nesta Semana Santa, e nesta Sexta-feira Santa logo cedo, procurou um velho amigo: o professor, escritor e historiador Cacá Fagundes. Junto da esposa Márcia, eles celebraram esse hábito quase esquecido no litoral.
Segundo Cacá Fagundes, no imaginário popular, quem se aproximava do combro das praias para cortar a raiz miraculosa do milome, um cipó, poderia ver o vegetal reluzindo e estralando – seria um milagre. Antônio Martim, 67, falecido em julho passado, num atropelamento, era coletor de ervas e mantinha o ritual. Havia receio que com sua morte, a tradição se perdesse.
A cada ano, o cipó é raspado numa tigela junto com cravo e alho, e a cachaça despejada em seguida. “Na fé popular, é uma velha simpatia que tem o poder depurativo, que tira do corpo tudo de ruim”, lembra Cacá.
A bebida amarga está ligada com o dia em que deve ser consumida. “Para os cristãos a Sexta-Feira Santa representa o sofrimento de Jesus, e essa bebida é socializada pelos participantes da tradição”, frisa o historiador.
Eleonora sempre acompanhava Antônio Martim na extração do cipó e produção da bebida em Itajuba, junto dos pescadores e populares do bairro – e mesmo após a morte de Martim, decidiu seguir com o rito de fé.
O “milome” deriva da palavra “mil homens”, inicialmente usada contra a malária. Na medicina popular, o cipó é usado contra picadas de cobras e para dores em geral, e até mesmo no envenenamento de pontas de flechas. Em doses altas, a toxina pode causar náuseas, palpitações e até afetar o cérebro.
Guiné na cachaça
Outra tradição da Páscoa barra-velhense é o consumo da bebida com guiné, celebrada por Irineu Anastácio Pereira, de Medeiros, que aos 91 anos de idade, também ingere a cachacinha preparada com a erva.
Seu Neu Pereira, como é conhecido, é natural de Medeiros. Segundo o também historiador Juliano Bernardes, toda Sexta-feira Santa, o consumo da cachacinha com guiné segue firme em Medeiros, um dos bairros mais antigos do município.