Itajaí
SOU DA SUA RUA: Moro onde não mora ninguém
Com senso de comunidade, moradores de rua fazem planos, dividem a comida, a coberta, a cachaça e as lembranças
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Cascavel não é o bicho. Cascavel é o cara. É o cara que é pai da Ketlin, de 13 ou 14 anos, e do moleque Nicolas, de 3 ou 4, ele não se lembra exatamente. Mas não deixa de se emocionar ao falar da família que ficou para trás, lá em Ivaí, no Paraná. Cascavel é o cara que pintava muros, paredes e casas e que um dia ficou desempregado, se agarrou na bebida e ficou sem muro, sem chão e sem casa. Mora na rua, dorme de marquise em marquise até ser enxotado pela polícia, vive de praça em praça cuidando de carro, vive do trocado para comprar a pinga que toma às sete da matina, todos os dias, no ponto da dona Rose que é o que abre mais cedo que todos os outros no terminal de ônibus de Itajaí. Ela é pontual para lhe servir a cachaça que alimenta o vício e que serve para aguentar as porradas que a vida lhe deu, que a vida lhe dá. Uma dessas porradas aconteceu dia desses. Foi quando a polícia expulsou Cascavel e seu grupo de andarilhos da marquise de um prédio na rua Camboriú que os cobria para dormir. O golpe marcou a ele e aos companheiros de rua. É perguntar, tocar no assunto e todos se levantam para falar e falar ao mesmo tempo, visivelmente revoltados com o que aconteceu. Para Cascavel, o problema ao serem tirados daquela marquise, naquela noite, foi que perderam também e principalmente as roupas e cobertores que tinham. Para ele, a retirada foi injusta, mais uma das tantas injustiças que marcaram sua vida. “Dona, aqui tem lei. Não quero cheirado, não quero noiado. Vai usar na caixa prego, principalmente quando a gente vai pra marquise dormir. Se eu tô descansando, quero descansar porque eles sugam tudo da gente e a gente fica sujeito a tudo: facada, pedrada e a todo tipo de loucura que puder imaginar”, diz. Agora o grupo de Cascavel dorme onde encontra uma marquise para passar a noite, de preferência perto do terminal para acordar perto do ponto da dona Rose. Eles são pontuais para começar a beber os 18 litros de cachaça que um deles, Émerson, o Besouro, garantiu que tomam diariamente. Besouro, assim como Cascavel, não consegue falar da infância ou dos pais. Só diz que desde os 15 anos - hoje acredita estar com 40 - está na rua, de cidade em cidade, de país em país. Saiu de Guarapuava (PR) e já passou por Brasília, chegou a visitar o Amapá, Chile, Paraguai. Já esteve em Joinville, foi para Florianópolis onde se lembra do filho que tem, um policial federal. “Quero acabar com essa vida e ir para Floripa constituir família. Faz 19 anos que ela me deu um chute na bunda e me botou pra fora. Faz mais de 20 anos que eu moro onde não mora ninguém”, fala com um olhar parado, perdido e cheio de incerteza. Besouro é artesão, faz tear e peças de alumínio das latas que cata na rua, no lixo. “Eu construo aviões. Construo o que você quiser. Sou caprichoso. Eu podia ser engenheiro, mas hoje quando tenho um litro de pinga e uma carteira de cigarro no dia, já estou feliz”. Diz isso e é imediatamente empurrado do banco da praça, pelo Tatu, que nasceu em Lages no ano de 1979. Ele toma o lugar do companheiro e se senta ao meu lado. Pede com os olhos arregalados para também contar sua história de vida. Mas o grupo vaia e desdenha. Quando ele afirma que tem um pai pastor e que também era pastor, o grupo vai à loucura. “Seu mentiroso, não coloca Deus nessa história”, diziam, nervosos e irritados. Ele continuou e disse que casou com Rosana, irmã do 2º pastor de sua congregação. Rosana, em sua lembrança, era gerente de loja, tinha duas filhas, as meninas Bianca e Carol, e também gastava um bom dinheiro em clínicas de estética, chapinhas e shopping. Ele, pintor de fachadas de prédios, faturava R$ 2,8 mil por mês e morava com Rosana em sua casa. Uma casa com suíte. Morou lá por quatro anos, mas se perde ao contar quando tudo mudou. “Estava assando carne em um domingo quando ela chega em casa e me pega com a irmã dela”. Mais uma vaia em meio a palmas e uivos do sarro que os colegas de rua insistem em tirar dele. O grupo indignado com a história afirma que depois disso, Tatu foi pra rua e ficou internado três meses. Saiu da clínica e voltou para vender cocadas. Eram 180 cocadas. Ele teve tudo roubado, não se lembra como e caiu nas drogas mais uma vez. “Cachaça, pedra, química. O que tiver eu traço. Sou dependente químico, mas eu era pastor”, volta a repetir e cede seu lugar no banco da praça para o Paulista, Márcio da Graça, 41. Um cara franzino e que diz ter se perdido depois que sua mulher foi estuprada por uma gangue enquanto ele apanhava. Segundo Cascavel, que demonstra cuidado e carinho ao falar de Paulista, depois da surra que levou, ficou ruim da cabeça. Diferente dos outros do grupo, Márcio tem casa em Itajaí, mora com a irmã. Passa o dia na rua com o grupo e volta ao anoitecer para dormir em casa. Enquanto Cascavel conta a história, Paulista fica irritado com a interferência do colega e começa a xingar. Quer voltar para sua história de vida e lembra que no litoral de São Paulo fazia parte de um grupo de pagode que era conhecido como “Pê da Madrugada” e que aparecia constantemente em entrevistas para rádios e emissoras de televisão. Convidado para um teste, veio para Balneário Camboriú, onde se casou e teve duas meninas e quatro meninos - Israel, Oséias, Isaías, Marcio, Margarete e Michele. Com a vida na noite, foi tomado pela bebida e começaram os problemas. “Depois que ela foi estuprada e eu apanhei, não quis me meter mais em confusão. Eu não queria matar os caras. Então, eu encho o caneco e vou dormir”. Diz isso e abraça Cascavel, que o abraça de volta e agradece pelos cobertores que, volta e meia, Paulista leva aos amigos do grupo. Gambazinho, 48, gaúcho de Giruá, uma cidadezinha de pouco mais de 17 mil habitantes, ao noroeste do Rio Grande do Sul, é mais sério e esperou parte do grupo debandar para falar. Veio para Itajaí há muitos anos. Tem três irmãs que moram na cidade, mas resolveu sair de casa depois que um dos cunhados acertou uma garrafada em sua testa. A cicatriz é aparente e profunda sobre o olho esquerdo. “Aqui na praça eu tenho mais amizade que dentro de casa”, explica a decisão. Gambazinho trabalhava com calçamento e perdeu o emprego há poucos meses. “A gente está perdendo trabalho desde que os haitianos chegaram e passaram a trabalhar quase de graça para as empresas”, acredita. Desempregado e sem querer voltar para casa com medo das ameaças do cunhado, Gambazinho fica com o grupo e ajuda a achar um local para dormir. “Tem que ser perto do terminal pra gente já estar perto da pinga das sete horas”, disse rindo. Nem um centavo Adeni Rocha Filho é educador social há 12 anos em Itajaí e conhece o grupo de Cascavel. Ele confirma que o álcool é a droga que prepondera ali, mas que essa não é a realidade das ruas. “99% das pessoas que abordamos nas ruas são usuárias de algum tipo de droga. Delas, 90% é viciada em crack e apenas 10% no álcool”, conta. Rocha trabalha na Casa de Abordagem da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, no bairro São Judas. Todos os dias, ele faz parte da equipe que sai às seis da manhã para percorrer as ruas da cidade e tirar delas quem está em situação de vulnerabilidade. Segundo ele, o índice de aceitação de encaminhamento por parte dos moradores de rua é considerado muito bom. “De cada 10 que abordamos, pelo menos oito aceitam vir para a casa de abordagem. Os outros dois que não topam são os ‘crônicos’ como é o grupo do Cascavel”, diz. A Casa de Abordagem tem capacidade para receber até 20 moradores de rua. Lá eles podem passar a noite, tomar banho e comer. Mas para isso precisam antes ser atendidos pela assistente social que vai determinar o caminho a ser tomado oferecendo passagens de volta à cidade de origem ou tratamento em clínica de recuperação, por exemplo. Segundo o supervisor geral do Programa Moradores em Situação de Rua da Prefeitura de Itajaí, Rubens Menon, mais de 80% dos moradores de rua vieram de outras cidades e a maioria esmagadora é de homens. A estimativa é que cerca de 400 pessoas estejam vivendo nas ruas de Itajaí, mas os números estão diminuindo nos últimos meses graças ao trabalho intensivo de resgate social feito pelo projeto que somente entre os dias 3 a 18 de julho encaminhou 69 pessoas para suas cidades ou clínicas de recuperação. “Os que estão em busca de emprego oferecemos vaga na casa de passagem para que possam ficar lá até que se estruturem”, diz. A Casa de Passagem, que fica na rua São Vicente, tem 32 vagas e Menon revela que nos próximos dias um novo albergue será aberto para oferecer mais 20 vagas. Nos dois locais, os encaminhados podem ficar até 30 dias seguidos e contam com alimentação e roupas doadas pela comunidade. Na tentativa de reduzir o número da população de rua, Menon revela que em breve a prefeitura irá lançar uma campanha de apelo para que as pessoas não deem esmola para quem está nas ruas. “Nunca gaste um centavo para dar esmola para essas pessoas. Isso torna o nosso trabalho de resgate social muito mais complicado. Com dinheiro e com comida eles não vão querer receber nosso apoio e encaminhamento e continuarão nas ruas em situação de risco”, explicou. O que o supervisor quer é que os mesmos grupos, seja de voluntários ou de igrejas, optem por fazer as doações de alimentos e roupas diretamente nas casas de apoio. “A sociedade precisa abraçar essa causa. Porque a mesma pessoa que dá a esmola numa esquina é a que nos liga pedindo para tirar o morador daquela região”. Fugindo dos fantasmas Eles se lembram dos filhos que já tiveram, da ex-mulher, mas não se lembram dos pais, ou da infância. Não há menção aos avós. Não há lembrança de um possível lar que porventura já tenha existido, de algum momento feliz, seja um balanço, um jogo de futebol, uma pipa no céu. Sabem a cidade que nasceram porque a abandonaram em busca de uma nova vida. Já sonharam em ter uma família. Se emocionam ao lembrar dos filhos. Um quis ser pastor, outro queria ser engenheiro ou artesão, outro queria fazer sucesso com seu pagode. Sobram olhares perdidos na tentativa de recuperar as memórias de suas tragédias pessoais. Os companheiros de cachaça e marquise é o que resta a eles, é o que ainda lhes dá a sensação de comunidade, o que dá a sensação de algum laço. “Os problemas emocionais vivenciados por um indivíduo que sofre abusos graves na infância, a violência grave, a rejeição clara deixam fantasmas emocionais que assombram essas pessoas ao longo da vida. Dificilmente elas se reestruturam porque dignidade você não compra na farmácia”, explica o cientista social e educador Guilherme Cechelero. Para ele, os moradores de rua, os sem casa, sofrem por parte da sociedade “a exclusão da exclusão”. “Eles são para a sociedade de maneira geral, a escória, a ameba, são os zumbis do Walking Dead. Porque a sociedade, com seu padrão burguês, já vê os mais pobres como inferiores. Imagine então como vê essas pessoas? Como o lixo do lixo”, garante. O especialista usa da neurociência para explicar que as violações de direitos e os abusos sofridos pelas pessoas em situação de risco provoca nelas um bloqueio mental para as lembranças passadas. “Eu preciso fugir dos fantasmas da infância e para isso eu recorro às drogas. Eu preciso estar chapado, bêbado, drogado para não lembrar, para esquecer dos abusos. Quantas vezes eu passo por um outro grupo, que fica na rua Brusque, num posto abandonado e os vejo durante o dia varrendo a rua? Mas depois, à noite, eles estão completamente chapados para aguentar a dor”.