Já na porta do apartamento, duas pessoas idosas me perguntaram se eu ia entrar, porque se eu fosse entrar, elas não entrariam, pois teria muita gente lá dentro, e tu sabes, tem o vírus. Entrei. Não sabia ao certo o que se passava. O pequeno menino, aquele que parece um Curumin, me guiou, disse que seu pai estava respirando mal, e o imitava, querendo deixar tudo explicadinho. Minha amiga, a mulher dele, já estava ao telefone, chamando a ambulância, e eu mal o tinha visto. No quarto, encontrei aquele homem deitado com as pernas para cima, água jorrando de seu corpo, que pensei, saravá, que essa água seja pra limpar sua alma, seu espírito. Ela me pedia que segurasse sua mão, com a finalidade de fazer o sangue circular, ele estava gelado, assustadoramente, gelado. Eu comecei a fazer massagem, com o coração e o pensamento nos guias espirituais de nós todos. Chamei todo mundo, né, alguém tinha que vir nos ajudar. E vieram, claro, porque quando a gente chama, eles vêm em caravana. Esse amigo é valoroso. Ele é valoroso, eu gritava mentalmente. Ora! Eu disse a eles, um poeta não pode morrer, pelo menos tão cedo. Um poeta exerce uma função reflexiva e psicológica nas pessoas. Não é bem assim, vamos pôr as coisas em pratos limpos, né?
Enquanto isso, o Curumin corria de um lado a outro, concentrado em suas rezas íntimas, que as fazia em seu quarto, e em deixar os brinquedinhos ao lado do pai, para dar sorte. Ele estava tão concentrado em ser necessário ali, e certamente o era, que me chamou a atenção, quando os homens da ambulância chegaram, que nós dois deveríamos estar com máscara, porque já havia muita gente naquele lugar. Concordei e disse que a minha estava na bolsa, no quarto do seu pai. Pois ele foi lá, trouxe a bolsa, e colocamos as máscaras. Muito mais seguros ficamos nesta vida, a partir dali. Ele será um grande homem!
A mulher do meu amigo, incansável, e esquecida que ficou de que estava doente, corria para resolver tudo. Quem a conhece sabe que estava com o coração estraçalhado, o seu amor estava ali, como quem partiria e, então, levariam mais tantos anos para se reencontrar. Parecia um tanto quanto injusto. Mas ela é muito prática, de uma praticidade que salvou a vida dele. Se ela tivesse pensado em primeiro chorar o acontecido, ai, meu amigo, talvez não tivesse dado tempo.
Foram para o hospital, e o Curumin se viu apenas comigo: você sabe que eu tenho duas mães? Sim, eu sei. Mas eu só tenho um pai. Quando ele disse isso, minha vontade era de colocá-lo no colo e abraçá-lo. Me aguentei, pois o que ele não precisava, no momento, é de uma tia chorona que o fizesse sofrer mais ainda.
Minha amiga, quando soube que o problema foi o coração, sozinha comigo, no corredor do hospital, aí sim, ela se desmanchou. E eu, assim como com o Curumin, queria colocá-la no colo e abraçá-la. Mas uma tia chorona não ajuda muito.
Tudo passou, meu amigo, ele sobreviveu, como há muitas outras intempéries da vida.
No dia seguinte, grata pelo acontecido e pela oportunidade de repensar muitas coisas, inclusive da importância que as pessoas têm em nossa vida, lembrei das pilhas.
Amigo, de onde tu pensas que eu tirei pilha palito para a minha amiga usar no aparelho de pressão?
Ao amigo André, a quem tenho certeza da amizade que atravessa vidas.