Entre 18 de março e 16 de junho, Frei Betto registrou seu dia a dia, que agora publica: “Diário de Quarentena” (Ed.Rocco).
São 90 entradas de um diário. Algumas são marcadas pela indignação com o descaso governamental pelo crescente número de mortos pela Covid-19. Em linhas rápidas, o registro da curva crescente de óbitos impacta o leitor. Claro que já sabemos. Mas talvez tenhamos nos habituado às mortes, e a notícias delas deixa de impressionar. Por serem cotidianas, dividindo o noticiário com publicidade, com o dia a dia palaciano, e com a baixa política, as mortes se tornam “naturais” como se não fosse espantoso “a cada minuto morrer uma pessoa no Brasil.”
É destas situações que, em certos momentos, este oportuníssimo livro nos lembra. E, lembrando, nos mergulha em justificada e bem-vinda indignação.
Mas há textos mais longos. E que se leem como contos ou crônicas. No máximo duas ou três páginas nas quais Frei Betto evoca episódios de sua vida, da história do mundo, da Bíblia. Um pouco de tudo. E é na leitura destas passagens, que cada leitor talvez encontre um pouco de si mesmo, de sua família, de seus conhecidos, de suas leituras.
E quem sabe não fica morrendo de vontade de escrever seu próprio diário?
Benditos diários!
São vários os depoimentos de que nosso atual isolamento traz à lembrança episódios que julgávamos sepultados em esquecimento. Episódios da infância na escola, da prisão e de viagens das quais Frei Betto nem se lembra da data, afloram às quase 200 páginas deste livro dedicado a Guilherme Boulos, cuja sobriedade dos textos espelha-se na beleza da capa onde se vê uma cadeira vazia, um livro aberto e um copo quase vazio num chão de tábuas lisas.
Ainda que sóbria - ou talvez exatamente por ser assim? - a linguagem do livro traz marcas de um texto cuidadoso e envolvente, a que não faltam reflexões sobre a escrita: “escrever é garimpar em si mesmo”; “ Ousado salto no vazio! Do outro lado não há nada. Papel em branco! Tela branca”.
Em vários momentos, este livro de Frei Betto sugere um ouvido muito sensível para a sonoridade da palavra. Algumas vezes divertida, apesar de trágica: “Nossa maior ameaça não é a pandemia, é o pandemônio”. Outras, mais lírica, “eternidade, eterna idade, terna idade, éter, é ...” .
Pelo menos em duas entradas, a música é o tema.
Numa delas, é a recordação de um show de jazz (Dizzy Gillespie & Arturo Sandoval) que inspira uma belíssima reflexão sobre a música, concebida como som primordial, anterior à palavra. Outra, a última entrada do Diário, é um belo e amoroso comentário sobre Chico Buarque, no qual a voz de Frei Betto é, às vezes, substituída pela colagem de trechos de canções de Chico.
Fechar o livro com o autor de Roda Viva é uma festa. E mais uma lição: aprendemos neste Diário da Quarentena - que “poetas, como os cegos, podem ver na escuridão” .
Benditos poetas !
* Marisa Lajolo é escritora e crítica literária, professora de Teoria Literária da Unicamp e da Universidade Mackenzie.