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Mais água no feijão


O gesto mais ousado de Francisco em sua visita ao Brasil foi, até agora, tomar o chimarrão oferecido a ele por um peregrino anônimo, enquanto percorria a orla de Copacabana.

Se há algo que chefes de Estado mais temem é o envenenamento. Em geral, viajam com seus próprios cozinheiros. Francisco, numa demonstração de seu espírito evangélico, não relutou em sorver a bomba - nome da haste que faz às vezes de canudo para levar o mate da cuia à boca.

E pensar que, no século 16, os jesuítas das reduções guaranis, no sul do Brasil – e lembremos que Bergoglio é jesuíta – chegaram a proibir o chimarrão por considerar o mate uma “erva do diabo”...

O papa Francisco, em seu pronunciamento na favela de Varginha, enfatizou que a fé não pode estar divorciada das exigências sociais. “Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que existem no mundo”, frisou, numa crítica contundente ao individualismo e às tendências religiosas tão afeitas a showmissas e aleluias, indiferentes aos dramas dos oprimidos.

Criticou a “pacificação” (que termo infeliz, lembra os primeiros contatos dos brancos com os índios) das comunidades empobrecidas, ao afirmar que tal esforço “não será duradouro” enquanto persistir “o abandono da periferia”.

Curioso é que, ao recordar as melhorias sociais em nosso país nos últimos anos, não falou em “governo”, e sim “nos esforços que a sociedade tem feito para combater a fome e a miséria.”

O papa acentuou a importância da “cultura da solidariedade, que vê no outro não um concorrente ou um número, mas um irmão”, ao descrever o mundo atual como centrado no egoísmo e no individualismo.

Faltou apenas dar nomes aos bois: o neoliberalismo, que prioriza a competitividade, e não a solidariedade, e procura incutir em todos nós não a ânsia por cidadania, e sim por consumismo e hedonismo.

Francisco apontou o diagnóstico. Resta-nos encontrar os remédios. Para a Igreja em crise, um deles poderia ser a Comunidade Eclesial de Base, como a que se reúne na capela de São Jerônimo Emiliani, e na qual ele benzeu o altar. Em Aparecida, em 2007, Bergoglio apoiou o resgate das CEBs.

Francisco lembrou que “somente quando se é capaz de compartilhar é que se enriquece de verdade.” E atualizou a doutrina social da Igreja ao dizer que “a medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como esta trata os mais necessitados, que não têm outra coisa senão sua pobreza.”

Sua visão de Igreja foi claramente delineada: “advogada da justiça e defensora dos pobres, diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas que clamam ao céu.” Mas por que tantos necessitados, tanta pobreza e desigualdades? Quais as causas?

Ao criticar a educação mercantilizada focada em apenas formar profissionais qualificados para o mercado (“simples transmissão de informações com o fim de gerar lucros”), Francisco poderia ter sinalizado o desenho da “globalização da solidariedade” na superação de um modelo econômico que concentra riquezas e, em nome do ajuste fiscal, promove a exclusão social, como é caso dos 25 milhões de europeus, a maioria jovens, ora desempregados.

Agora é hora de “colocar água no feijão” e apontar alternativas, como a economia solidária e o “bem viver” dos indígenas andinos, cujos valores coincidem com os do Evangelho.

Francisco não é um pastor que ordena e impõe, e sim que abre horizontes e imprime entusiasmo. Há algo de novo na barca de Pedro.

Frei Betto é escritor, autor de “Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes), entre outros livros


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