A existência da potência ainda contrasta com o cenário tradicional. O Grande Oriente do Brasil (GOB), a mais antiga potência do país, não reconhece lojas mistas e as considera ilegítimas. Para não ficar isolada, a GLUSC foi atrás de reconhecimento externo e firmou acordos com mais de 15 potências estrangeiras, entre elas instituições do Canadá, Chile, Portugal, Peru, Espanha e outros.
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Pra quem nunca teve contato com o universo maçônico, José Carlos Machado explica de forma simples: as lojas são como cidades, onde os maçons se reúnem e trabalham; as potências funcionam como estados, organizando várias lojas e garantindo regras e reconhecimento. A GLUSC é essa “potência-estado”, reunindo lojas em Itajaí, Chapecó e Pato Branco, com mais de 400 iniciados.
O Complexo Maçônico José Barbosa Machado, sede da GLUSC, abriga três templos — um deles a céu aberto, único em Santa Catarina e um dos três no país. Ali, o trabalho filosófico e simbólico se soma a ações sociais discretas, feitas sem exposição.
A história da potência começou antes de 2010. José sempre frequentou lojas masculinas e cresceu nesse ambiente. A virada veio quando um grupo de mulheres de Itajaí decidiu entrar para a ordem. Entre elas estavam sua esposa, Sônia Regina Machado.
Como não havia espaço para mulheres no estado, a alternativa foi Curitiba. As viajantes de Itajaí faziam o trajeto quinzenalmente, primeiro em um carro, depois em dois e até precisarem de um micro-ônibus — deslocamento que rapidamente se tornou caro e cansativo. Para resolver a situação, o grupo criou uma loja mista em Itajaí por volta de 2002. O projeto cresceu, virou três lojas independentes e, em 2010, deu origem à GLUSC.
A maçonaria tradicional se apoia em textos antigos chamados landmarks. O mais polêmico é o landmark 18, que veta a iniciação de mulheres, pessoas negras e pessoas com deficiência — reflexo de normas do século 18. A GLUSC segue todos os “mandamentos”, menos esse. “Em pleno século 21, não dá para obedecer a um artigo como este. É inconstitucional. Trocamos esse trecho por um princípio baseado em índole e bons costumes”, afirma.
História contada por uma professora curiosa
A curiosidade de Sônia pela maçonaria surgiu em sala de aula. Professora de História e casada com um maçom, ela sempre esbarrava nos livros: a ordem aparecia ligada a momentos importantes do país, mas sem explicação clara. “Os livros diziam que a maçonaria participou da Independência, da Abolição e da República, mas não explicavam como. Isso me deixava curiosa”, lembra.
Sônia buscou respostas com maçons conhecidos, mas sentia que as explicações paravam pela metade. O convite para ingressar numa loja mista em Curitiba veio no início dos anos 2000, quando ela fazia mestrado.
Mesmo vindo da maçonaria masculina, José diz que não resistiu à entrada da esposa na maçonaria mista. Para ele, a opinião importante era a do pai, maçom antigo e respeitado — que apoiou a decisão e defendeu que a presença feminina só fortaleceria a ordem.
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Mesmo com a rotina puxada, filhos pequenos e trabalho em Itajaí, Sônia aceitou. Foi iniciada em 2002. Na época, duas mulheres de Itajaí já faziam parte da loja, Nilce Carolina Colla Prando e Márcia Regina Molleri — atualmente, todas atingiram o almejado Grau 33. As três são pioneiras da maçonaria mista na região e as primeiras iniciadas da GLUSC.
Sônia reconhece que a presença feminina na maçonaria enfrenta barreiras no Brasil. “Ainda existe uma corrente que dificulta a entrada da mulher. Fora do Brasil isso já é natural”, diz. Para ela, incluir mulheres é fundamental.
Ela explica que, nas potências tradicionais, até existem grupos femininos, mas separados dos masculinos. Às mulheres costuma caber a parte de caridade, enquanto os homens ficam com o estudo filosófico — uma divisão que ela considera limitada. “Eles não permitem que uma mulher assista à reunião de uma loja masculina”, afirma. Nas lojas mistas, homens e mulheres são vistos como iguais.
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Maçonaria em família
Ao explicar a principal motivação para enfrentar a resistência e criar uma potência mista, José Carlos responde com uma palavra: família. “Eu sou maçom, a minha esposa é maçom, meus filhos cresceram aqui dentro. Queríamos uma maçonaria que acolhesse a família inteira”, afirma.
Ele lembra que, em lojas masculinas, existem organizações juvenis ligadas à maçonaria, como os DeMolays para meninos e as Filhas de Jó para meninas. Para ele, o caminho das meninas costuma ficar sem continuidade dentro da maçonaria tradicional. “Os DeMolays amadurecem e seguem na vida maçônica. E as meninas vão para onde? Não há espaço. O principal motivo de criar isso aqui foi ter uma maçonaria que envolve a família”, afirma, “para nós, a família é o mais importante de tudo”.
Do preconceito ao reconhecimento internacional
A criação de uma potência mista não aconteceu sem conflitos. José Carlos relata que, na época da fundação, houve resistência de lojas masculinas que não reconheciam a legitimidade do grupo. Também houve dificuldade para encontrar espaço físico para os rituais. O complexo de Itajaí, com dois templos internos e um externo, nasceu a partir de muito investimento.
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Diante da dificuldade de integração com a maçonaria tradicional, a GLUSC buscou acordos internacionais. A potência mantém relações com organizações das américas do Sul, Central e do Norte e com países da Europa por meio de entidades internacionais que representam grupos de potências mais liberais. Com isso, os irmãos e irmãs da GLUSC passaram a ter acesso a templos de várias partes do mundo que aceitam maçonaria mista.
Mistério da maçonaria
Sobre o mistério que ainda envolve a maçonaria, José Carlos diz que boa parte disso ficou no passado. “Antes a maçonaria era velada. Hoje, com a internet, ela está praticamente aberta”, afirma. Ele explica que apenas os sinais e formas de reconhecimento entre maçons continuam reservados ao templo. Por tradição, a ordem não discute rituais com não-membros, o que alimentou teorias da conspiração.
No dia a dia, a GLUSC reúne encontros filosóficos, estudos e ações sociais feitas sem alarde. A proposta é fortalecer valores e formar pessoas mais éticas e conscientes. Sônia destaca que a maçonaria não é uma religião, mas se apoia em princípios presentes em várias tradições religiosas — sem vínculo com uma fé específica, embora a fé seja um pilar obrigatório.
Aos 15 anos, a potência equilibra tradição e mudança. Mantém ritos e símbolos antigos, mas interpreta o landmark 18 conforme a Constituição brasileira para permitir a entrada de mulheres e pessoas antes excluídas. Entre colunas e aventais, a aposta é seguir escrevendo essa história com a família inteira presente.