"Educação tem que ser entrega. Não só sabedoria acadêmica, mas a sabedoria emocional, os valores”
Diretora-executiva do Colégio Salesiano Itajaí
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Após 40 anos dedicados à educação, a diretora-executiva do Colégio Salesiano Itajaí anunciou a aposentadoria. Aos 66 anos, Veronica Roncelli tem data para deixar o ofício: 31 de janeiro de 2024. Veronica foi a primeira mulher a ser gestora administrativa do Salesiano em Itajaí. Até 2017, o posto era ocupado somente por padres. No entanto, a história de Veronica começou bem antes do cargo de chefia. Ela foi professora, técnica de basquete e uma apaixonada pela educação. Nesta entrevista à jornalista Franciele Marcon, ela confirmou sua aposentadoria, revelou do que sentirá mais falta no cotidiano da escola e alertou sobre os cuidados que pais e professores devem ter com o uso das novas tecnologias. Também falou da necessidade urgente dos governantes capacitarem os professores para deixá-los mais preparados para o ofício. Veronica ainda faz um alerta para quem escolher a carreira na educação: é preciso amor ao outro e muita entrega para trabalhar. As fotos são de Fabrício Pitella. A entrevista completa, em áudio e vídeo, você confere no Portal DIARINHO.net e em nossas redes sociais.
DIARINHO – A sua saída da direção do Salesiano representa o fim de uma era? A senhora está há quatro décadas na rede Dom Bosco. Iniciou como professora e desde 2017 é diretora do Salesiano de Itajaí...
Veronica: Acho que tudo tem que fechar o ciclo. Chegou o meu momento de fechar. Eu estou saindo, depois de tanto tempo, de tantos anos, deixando assim a escola, procurando fazer o possível e o impossível pra deixar realmente tudo no lugar. E dentro daquilo que eu pude fazer, eu fiz. Com muito amor, muita dedicação, muito trabalho. Mas estou saindo muito feliz. Saio dia 31 de janeiro, deixo o meu último dia de trabalho. Chego dia primeiro de fevereiro para apresentar o novo diretor. [Já tem o nome do novo diretor?] O diretor vem de outra rede, não é a Rede Salesiana. Nós sabemos que ele está vindo, mas no momento ainda não podemos identificá-lo. [O que que aquela Veronica que entrou no Salesiano há 40 anos diz pra essa Veronica que vai deixar a rede no dia 31 de janeiro?] Parabéns, Veronica! Me perdoo as falhas que eu porventura tive, mas me dou parabéns porque tudo foi feito com muito amor sempre. Eu sempre saí da minha casa, nesses 40 anos, com muita vontade de vir para cá. Tudo que eu fiz foi para meu crescimento. Eu sou outra mulher. Lógico, venho de uma família que tem uma formação excelente, mas o Salesiano me completou. E quem trabalha com a educação, o sistema preventivo Dom Bosco, que dá a liberdade de você contribuir nesses planejamentos, na formação, até na proposta pedagógica. Isso realmente é uma satisfação muito grande. A Veronica sai bem, a Veronica sai feliz, a Veronica sai muito grata por tudo.
DIARINHO – A senhora está preparada para se aposentar?
Veronica: Estou preparada. Nos seis primeiros meses não farei nada, vou cuidar da minha vida um pouquinho, né? Cuidarei da minha saúde também, preciso retomar a minha atividade física que há muito tempo não faço. Após os seis meses fazer uma reflexão de como foi essa parada. Talvez um projeto voluntário. A definição dos primeiros seis meses eu tenho: é realmente cuidar da minha saúde e da minha vida.
" Eu tive alunos que eram bolsistas, que hoje não são mais bolsistas. Isso é muito gratificante. Muda a vida”
DIARINHO – Quais as principais mudanças que aconteceram na educação desde o início da sua atuação na rede?
Veronica: O Salesiano, na verdade, só acrescentou ao sistema educacional. O Salesiano tem uma fidelização muito grande ao sistema preventivo. E ele ficou mais moderno. O aluno é protagonista do processo, os professores são protagonistas. Todos nós protagonizamos esse processo. A mulher, a valorização da mulher, a valorização do negro. Isso é uma mudança muito grande que a nossa escola teve no decorrer desses anos. Você imagina que 40 anos atrás uma mulher veio trabalhar numa escola de padres. Na época isso era muito limitado. Hoje, a gente vê que o processo está bem natural, digamos assim, agradável para se trabalhar.
DIARINHO – Na educação em geral, qual mudança mais significativa a senhora percebe? O jeito de ensinar mudou?
Veronica: O sistema educacional tem que ser alterado. A gente percebe que o problema social desse país inicia na educação. Houve mudança, mas houve uma falta de formação dos nossos colegas na educação em geral. Faltou comprometimento dos nossos governantes também. Do grupo pensante, de quem governa. Faltou protagonizar, levar o professor junto. O que o Salesiano faz, faltou para o sistema educacional. O problema social está cada vez mais crítico. E ainda falta a educação, a saúde, a religião, falta conversarem mais entre si. A educação mudou em função disto. Eu sou aluna de escola pública. Eu tive toda a minha formação numa escola pública. Até hoje eu guardo muitas coisas boas, excelentes. As famílias estão um pouco sem estrutura, mas o problema passa a ser social. Não estou transferindo o problema. Mas a educação é maravilhosa. Ela é incrível, ela tem coisas novas, inovações. [Houve avanços? O que faltou ou falta para melhorar?] Houve pouco avanço. Os livros trouxeram bastante mudanças. Mas volto a te dizer, faltou uma coisa chamada formação para os educadores. Porque não adianta você me dar um livro de didática, por exemplo, se você não ajudar. Ajudar em como interpretar, como fazer, como colocar isso em prática. A própria universidade. Precisamos rever um monte de coisas na educação. A universidade porque passou muito a ser EaD. Isso fez com que os nossos profissionais da área da educação deixassem de ter a prática do dia a dia, do cotidiano, de uma sala de aula, da presença, da questão da didática. Principalmente da didática. Precisamos ter didática. Precisamos ser autoridade, não autoritários. Precisamos aprender a ser autoridade. Isso o professor aprende também na universidade.
DIARINHO – A rede salesiana sempre incentivou a prática de esportes. É um diferencial pedagógico?
Veronica: Nós temos um diferencial que é o esporte, o esporte educa também nos processos. Não esporte apenas como prática de desenvolvimento físico, mas também do seu processo integral, porque o aluno supera os limites no esporte. Isso faz com que se complemente a formação acadêmica. O esporte desenvolve, desenvolve saúde, amizades, o convívio com o outro. Esporte é tudo na vida. [Disciplina.] Disciplina. O próprio Dom Bosco tinha isso muito claro. Ele começou praticando esporte com os meninos na época dele... Com o esporte você consegue tudo, desenvolver, disciplina, e eu chamaria de dar os limites. O aluno sabe que ele tem que estudar. No Salesiano não basta ser atleta. Ele tem que ser atleta e também estudar. As duas coisas. O esporte dá limites.
DIARINHO – Como o Salesiano impõe limites em época de tanta tecnologia? A gente tem um uso massivo das redes sociais. Qual o cuidado com os estudantes?
Veronica: O nosso material didático é digital a partir do sexto ano. Isso faz com que o aluno aprenda a usar as redes sociais. Nós tivemos um crescimento muito grande do nosso aluno. O nosso aluno entende, os pais também precisam entender. Um exemplo: o aluno vai no shopping, muitas vezes eu vejo no almoço, uma família almoçando e os pais no celular. É preciso saber o momento que você vai usar suas redes sociais. No Salesiano, temos um grupo de mães que fazem parte da educação digital, que trabalham também em cima disso. Semanalmente, nós temos formação sobre as redes sociais, o uso da tecnologia do dispositivo. [Há muito uso durante o horário escolar?] O professor, dentro do próprio planejamento dele, vê o momento que vai usar. O aluno não fica usando toda manhã, por exemplo. Aluno do sexto ao terceiro ano do ensino médio tem seu momento de usar. E ele não usa o celular dentro de sala de aula. Às vezes, escondidinho lá, usa, mas é bem limitado. Se você vier aqui no recreio, por exemplo, você vê que a maioria está jogando bola, não estão nas redes sociais. A gente procura orientar neste sentido. Ainda estamos aprendendo, enquanto sociedade, a fazer o uso da tecnologia. [Tem esse controle?] Sim, nós temos sim. A nossa rede é protegida. Nós temos o controle. E, volto a dizer, é orientação. A gente está sempre orientando, sempre conversando com nossos profissionais. Nossas salas são todas equipadas com tecnologia. Mas estamos pedindo, no cotidiano, cuidado com o uso do celular.
DIARINHO – Hoje já há controvérsias sobre o benefício do uso de novas tecnologias em sala de aula. A Suécia, por exemplo, aboliu o uso de livros digitais. O Salesiano mede o desempenho dos alunos desde o início dos recursos digitais?
Veronica: A rede está agora se reestruturando. Como te disse, nós usamos os livros, dispositivos com limites. Também temos livros físicos, nós não temos só digital. Nós também passaremos a usar, a partir de 2024, obrigatoriamente, os dois livros: livro físico e digital. Não ficará somente no digital. A rede já se posicionou dessa forma. Antes nós tínhamos a oportunidade de ter só o digital. A partir de 2024 entrará o físico e o digital. [Então já houve uma mudança e o retorno do livro físico é fato...] Sim. E tem também o bom senso da escola, o bom senso de cada profissional, de não usar tanto o livro digital, mas usar os dois.
"A gente percebe que o problema social desse país inicia na educação”
DIARINHO – O uso de inteligência artificial será de alguma forma benéfico à educação?
Veronica: Na rede salesiana acho muito difícil, porque Salesiano é presença, presença do ser humano. Mas acho muito difícil na rede salesiana chegar a esse uso. Não dá para deixar na inteligência artificial, porque também já se tem estudos que isso não funciona. Tá aí as faculdades EaD. Muitas deram certo porque EaD é para alunos que sabem estudar individualmente. Mas a convivência, tem que conviver com o outro. A sociedade precisa aprender a conviver com o outro.
DIARINHO – Quais estratégias a escola usa para incentivar a leitura?
Veronica: Os professores passam a leitura de alguns livros clássicos. Para 2024 está prevista a volta das feiras de livros. Nós estamos já no quarto e quinto ano do ensino fundamental, anos iniciais, um rodízio de leitura, de salas, de ambientes. Isso vai fazer com que o aluno tenha esse exercício da leitura física. Precisa ter esse compromisso da leitura.
DIARINHO – É possível estudar no Salesiano mesmo quando não se tem condições de pagar?
Veronica: Eu acho muito lindo no Salesiano essa parte da filantropia. Nós temos 400 alunos que estudam gratuitamente. Estão juntos, envolvidos junto com os outros. Às vezes chega um pai aqui que diz: “Veronica, eu precisava de um desconto”. E eu digo: “Pai, você tá pagando o teu e de mais outros. No mês de maio, junho, tem um edital que sai no site do colégio”. “Mas eu não tenho computador, não sei como faço isso”. Vem pra escola, vai receber todas as informações e participar da bolsa junto conosco. Nós temos hoje, eu teria tantos nomes que eu poderia te dizer, que foram alunos, que são destaques, mas a gente evita falar. Isso não é nada de marketing, é lealdade. Lealdade com as pessoas. Nós não precisamos colocar aí no outdoor: “quem passou, quem não passou”. Essas pessoas, é importante que saibam, que não percam a oportunidade. O que mais marcou na minha vida foi um ano em que um aluno, ele era bolsista, foi aprovado num grande concurso. Talvez as pessoas que vão me ouvir vão lembrar disso ou vão se ligar. Ele não tinha completado a maioridade, 18 anos. Ele foi tão bem no concurso que esperaram ele fazer 18 anos para assumir. Isso para mim foi muito marcante. Eu tive alunos que eram bolsistas, que hoje não são mais bolsistas. Isso é muito gratificante. Muda a vida. Eu tive gente que era bolsista e durante o ano veio aqui e disse: “Eu não preciso mais da minha bolsa”. Você quer gratidão maior do que isso?!
DIARINHO – Dia 31 de janeiro está chegando. Do que você vai sentir mais falta nesse seu cotidiano na escola?
Veronica: Não tenha dúvida, fico ainda emocionada, o que mais sentirei falta é de olhar para o pátio. Com certeza, irei sentir muita falta. Meus colegas! O dia que nós retomamos o segundo semestre, na capela, fizeram uma despedida que vai me marcar para o resto da vida. Quando você é diretora, você é muito solitária. Vive sozinha. Você não pode, muitas vezes, socializar. Os assuntos, a maioria dos assuntos, não podem ser socializados. Eu acredito em conselho, acredito em protagonismo, acredito numa gestão corporativa. Mas, infelizmente, nós ainda temos que vencer nesse sentido. Algumas pessoas ainda não têm esse conhecimento. Dos pais, a maioria dos pais já foram meus alunos. Mas do pátio vou sentir muita falta. Meu agradecimento, eu sou tão grata, tão grata […]. Meu Deus como eu sou grata, sou muito grata. Vim de escola multisseriada, e entrar no Salesiano? Não de ser diretora, não. Isso foi consequência do trabalho. Mas tu ser a Veronica pessoa, a Veronica ser humano. Aquela menina lá da Paciência que veio para cá e conquistou. E eu saio muito tranquila. Peço desculpas por alguns erros que cometi durante minha caminhada. Mas foi por falta de amadurecer algumas falas, algumas coisas que eu fiz. Mas eu só tenho a agradecer, pedir perdão a essas pessoas. Sou muito grata aos salesianos. Eu fui uma funcionária, eu nunca precisei puxar o saco, pelo contrário, sempre fui muito encrenqueira, muito faladeira das coisas. Sempre falei muito, tinha vontade de falar as coisas. Por isso eu acho que passei esses anos todos aqui. Mas eu sou muito feliz. Não sou melhor nem pior, ninguém é insubstituível, mas ninguém substitui ninguém, aliás. Mas a pessoa que vem, vai pegar a escola, vai dar continuidade, nossa cidade é maravilhosa, vai todo mundo acolher, os alunos também.
DIARINHO – Veronica, qual conselho para a pessoa que quer ingressar na carreira da educação? Veronica: Tem que gostar, tem que ter vocação. Sabe, eu tinha minha professora, minha primeira professora, que ainda vive, a professora Valdete Cunha. Quando estudava na multisseriada, uma vez ela me encontrou na universidade e disse assim: “o que você tá fazendo aqui?”. Eu disse “tô fazendo Pedagogia”, ainda na época da Fepevi. Ela disse: “olha, hein. Você quer ser professora? Você tem que aprender a gostar do outro. Você tem que gostar do outro!”. Você precisa ter vocação e tem que amar. Tem que amar, tem que se conhecer. Porque é uma entrega. Educação tem que ser uma entrega. Não só a sabedoria acadêmica, mas a sabedoria emocional, os valores que são fortes para você ingressar na educação. Mas é muito gostoso, é uma escolha maravilhosa.
Raio X
NOME: Veronica Roncelli IDADE: 66 anos NATURAL: Brusque ESTADO CIVIL: Divorciada FILHOS: Não FORMAÇÃO: Graduada em Pedagogia, técnica de basquetebol e mestre em Educação, especialista em Supervisão Escolar TRAJETÓRIA PROFISSIONAL: Ingressou na carreira de educadora aos 19 anos em uma escola pública de Joaçaba, oeste de Santa Catarina. Iniciou no Colégio Salesiano em 1979, atuando como professora até 1991; entre 1991 e 1994 atuou no colégio estadual Mansueto Trés; retornou ao Colégio Salesiano em 1995 como professora; em 2010 assumiu como administradora e desde 2017 ocupa o cargo de diretora-executiva no Colégio Salesiano Itajaí
Comentários:
MARCELO ANDRIANI OURIQUES
11/12/2023 13:36
Parabéns, Veronica. E, sobretudo, muito obrigado pelo seu empenho e por ser essa profissional maravilhosa. Eu, minha filha e agora minha neta tivemos o privilégio e a sorte de tê-la como Educadora.
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