Efeitos colaterais da pandemia
Outubro Rosa tem a missão de resgatar pacientes que não fizeram os exames preventivos em 2020
Em 2020 houve uma enorme redução no número de mamografias, dificultando o diagnóstico precoce dos tumores.
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Renata Rosa
Especial para o DIARINHO
Falar de câncer nunca é uma tarefa fácil. O estigma de que é uma doença fatal ainda afasta muitas pessoas da prevenção por medo do diagnóstico. Um câncer de mama detectado precocemente tem chance de cura de mais de 90%, por isso a campanha Outubro Rosa se tornou uma ferramenta essencial para conscientizar a mulherada para a importância dos exames anuais. Mas 2020 foi um ano atípico. Além da incerteza sobre a segurança sanitária, a prioridade de atendimento foi tratar o covid.
Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o câncer de mama foi responsável por 29,7% dos casos de neoplasia em mulheres em 2020. Apesar de ser uma doença prevenível, a demora em detectar o nódulo aumenta as chances de complicações. Em 2019, o Brasil registrou 18.068 mortes por câncer de mama. A incidência maior acontece a partir dos 40 anos, apesar do SUS ter mudado este parâmetro para 50 anos para realizar exames.
Segundo o INCA, o número de mamografias no SUS caiu de 1.948.471 em 2019 para 1.126.688 em 2020. Isso significa 800 mil exames a menos e quatro mil casos não diagnosticados. A mastologista paulista Jorna de Faria Bessa publicou um artigo científico sobre os impactos da pandemia na detecção do câncer no Brasil. Ela fez um levantamento de mamografias realizadas em 2019 e 2020 com diagnóstico de nódulos palpáveis e constatou que 50 mil mulheres com atendimento de urgência não fizeram exames.
Em Itajaí, a supervisora da Saúde da Mulher, Ana Tereza Canziani Pereira Boschi, confirma que houve uma redução drástica no número de exames em 2020 por medo do contágio, mas acredita que o atendimento seja regularizado este ano. Para isso a secretaria de saúde elaborou um plano de busca ativa através das agentes da Saúde da Família, que tem 60.098 pacientes cadastradas entre 25 a 69 anos. Os exames são realizados no Hospital Marieta e na Clínica São Lucas. Em 2019 foram realizadas 2.655 mamografias. E por causa da demanda reprimida de ultrassom, foi firmado um convênio com duas clínicas para a realização de 200 exames.
ONGS de apoio à saúde da mulher ficaram fechadas por seis meses
As ONGs que dão suporte a este público também ficaram paralisadas em 2020. A presidente da Rede Feminina de Combate ao Câncer (RFCC), Dilma Pereira Ramos, revela que quase ninguém que a entidade atende fez o exame no ano passado. A RFCC atua há 43 anos e seu foco é a prevenção do câncer do colo do útero, e também mantém um convênio com a Unimed para a realização de 25 mamografias/mês, caso a paciente apresente alteração nas mamas. Por causa da covid, a entidade passou a atender por agendamento 16 mulheres/dia.
“A Rede surgiu da necessidade de complementar o apoio à saúde da mulher porque a demanda da rede pública é muito grande”, conta Dilma. O serviço voluntário atende mais de 20 mil mulheres e além de realizar o exame, faz palestras, promove encontros e eventos para manter as contas em dia, tudo que ficou parado por causa do distanciamento social. A RRCC conta com 35 voluntárias, duas enfermeiras e duas psicólogas e atende no bairro São Vicente.
O caso da ONG Amor Próprio, a situação é mais dramática. Sem condições de custear o aluguel por causa da paralisação das atividades, a entidade fechou e reabriu em novo endereço, com outra diretoria, num imóvel emprestado no bairro da Vila. O foco é dar suporte emocional para as pacientes como a comerciante Ednéia Vicente Salvaro, 55 anos. Ela foi diagnosticada em 2015, quando removeu parte de uma mama. Mas dois anos depois o câncer voltou no mesmo lugar, por baixo da prótese. A mama foi removida e passou pela quimio e radio.
Ednéia conta que a entidade foi essencial para superar os momentos críticos. “Nossa, eu chegava lá arrasada e elas me colocavam pra cima. Não sei como seria sem a ajuda delas”, revela. Recentemente, ela recebeu um novo diagnóstico, realidade de muitas mulheres que aprenderam a conviver com o câncer. Mas sem apoio é uma missão quase impossível.
Na Amor Próprio rola muita conversa, arteterapia, doação de cachecóis, gorros e perucas, essenciais para quem está fragilizada. E também tem a parte pedagógica, em que ensina a fazer o autoexame. A entidade sobrevive das vendas do brechó e de camisetas da campanha do Outubro Rosa. O sonho das voluntárias é erguer a sede própria em terreno doado pela prefeitura no bairro Cidade Nova. E para isso, pretendem intensificar as campanhas de arrecadação e firmar parcerias em 2022. O trabalho é desenvolvido há 28 anos.
Nada para a disposição de Letícia em viver intensamente
Letícia Belacruz, 66 anos, não mudou de planos ao receber o diagnóstico de câncer de mama bem no dia em que estava dando entrada na aposentadoria, em 2013. Depois de décadas trabalhando na área da saúde, ela pensou que finalmente teria tempo para viajar. As viagens rolaram, só tiveram que esperar ela ser submetida a uma mastectomia. Nem as sessões de quimio a impediram de fazer o que gosta. “Eu saía dali e ia direto dançar no bailão”, relembra.
“Quando tive que raspar a cabeça, eu dava risada e as pessoas choravam. Mas eu sempre quis saber como ficaria careca. E pensar que tem gente que não faz o tratamento porque o cabelo cai!”, se espanta. Esse alto astral diante de situações difíceis é tão contagiante que Letícia decidiu levar sua experiência para a ONG Amor Próprio. “Eu digo que não pode perder a alegria de viver. Eu agradeço a Deus todos os dias por estar aqui”.
Após os cinco anos do tratamento inicial, e do medicamento via oral, Letícia achou que estava curada. Por isso não se preocupou em fazer o monitoramento anual no ano passado, já que a prioridade era o covid. Além disso, seu marido tinha ficado cego. “Foi uma opção minha me dedicar a ele. Mas eu poderia evitar o que estou passando se tivesse feito os exames”, admite.
Letícia está com metástase no reto e fígado e avaliando a necessidade de nova cirurgia. Ela descobriu que o câncer tinha voltado ao ter embolia pulmonar duas vezes, uma durante uma viagem e outra em junho, quando ficou internada.“Como eu tinha falta de ar, acharam que era covid, mas depois de ficar isolada, o médico concluiu que foi provocada pelo câncer”, afirma. Hoje ela voltou para a quimio, mas nada que a faça desistir de suas metas.
Superar a doença despertou sororidade e estimulou o voluntariado
A professora Sonia Cabral, 65 anos, não gostava nem de mencionar a palavra “câncer” quando recebeu o diagnóstico em 2013, depois de se aposentar. Ao contrário de Letícia, ela ficou apavorada e teve que adiar os planos estéticos. “Como sou baixinha e tinha seios grandes, sonhava em fazer redução das mamas, mas a prioridade era a minha sobrevivência”, relata.
Na época do diagnóstico, Sonia fazia reposição hormonal e nunca descuidou dos exames preventivos, mas naquele ano, foi detectado um nódulo não invasivo, por isso não teve que fazer quimio, só radioterapia. Foi tirado parte do seio e anos depois, foi submetida a uma reconstrução mamária, que não ficou lá essas coisas. “São os percalços da vida, mas não deixo me abalar, até porque meu marido está com Alzheimer e precisa de mim”, conta.
Apesar da batalha diária por causa da doença do marido, Sonia encontra tempo para cuidar das mulheres. Ela é voluntária da RFCC, onde faz de tudo um pouco: cadastra as pacientes, orienta, agenda e fica de plantão uma vez por semana. “Às vezes a gente até vira psicóloga porque muitas precisam de uma palavra amiga”, relata. Sonia faz o acompanhamento pela Unimed, mas no ano passado, decidiu postergar. “O convênio não recusou, mas orientou se não fosse urgente, se eu poderia aguardar, então farei os exames depois de imunizada”.
No caso de Valéria Furlani Burg, 59 anos, da ONG Amor Próprio, o engajamento não foi instantâneo. “No começo eu nem queria saber de ir num lugar onde só teria gente falando sobre câncer. Já bastava eu estar fazendo o tratamento, com toda a insegurança e dilemas que a gente enfrenta”, recorda. A chave mudou quando ela conheceu o projeto e se apaixonou. E agora luta para reconstruir a entidade, que sofre com a instabilidade financeira. A pandemia também afastou as voluntárias, até porque várias estão em tratamento.
Ela foi diagnosticada em 2009, após passar perrengue com a enchente de 2008. No ultrassom foram descobertos 13 linfonodos nas axilas. Depois de retirar parte de um seio e fazer quimio e radio, ela está há 12 anos saudável, o mesmo tempo que se dedica ao voluntariado. E está agora a frente da instituição, que oferece, além de ombro e acessórios, informações sobre os direitos da paciente oncológica, acesso a exames preventivos e muita sororidade.
Confira o podcast sobre o tema acessando https://diarinho.net/podcast/328.