Itajaí

Mário Sérgio Cortella

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“Acho que estar na escola é uma experiência sócio, cultural e educativa insubstituível” Filósofo e palestrante “Eu não tenho nenhuma dificuldade em aceitar a convivência com alguém que acredita que a terra é plana. Eu só não quero que ele obrigue a todos a acharem que é assim” Não foi ao acaso que cerca de oito mil pessoas lotaram o Centreventos da Marejada, em Itajaí, para ouvir um filósofo na noite de quarta-feira. Mário Sérgio Cortella está hoje entre os mais respeitados e requisitados pensadores do Brasil. Ex-monge carmelita, largou a vida religiosa para se dedicar à carreira acadêmica. Escritor de sucesso, teve os educadores Moacir Gadotti e Paulo Freire como orientadores de seu mestrado e doutorado, respectivamente. Talvez venha daí o seu viés humanista. Mas o que o torna mesmo famoso é sua capacidade de transformar em “pratos digeríveis” a teoria de grandes filósofos, como Descartes, John Loocke, Platão e Sócrates. Em Itajaí, esteve a convite da secretaria de Educação, numa das atividades do programa municipal Escola da Inteligência. Nesta entrevista ao jornalista Sandro Silva, Cortella fala de alguns temas clássicos da filosofia, dos desafios dos pensadores na atualidade e de temas como individualismo e coletividade. Nome completo: Mário Sérgio Cortella Idade: 65 anos Local de nascimento: Londrina (PR) Estado civil: Casado Filhos: Três Formação: Filosofia, mestre e doutor em Educação. Experiências: Monge carmelita, professor universitário, filósofo, escritor, ex-secretário de Educação da prefeitura de São Paulo na gestão de Luíza Erundina, palestrante. DIARINHO – Nesses tempos em que há pessoas aceitando a teoria de que não há transformações climáticas em curso por conta da intervenção humana na natureza, negando parte do conhecimento científico, tempos em que líderes mundiais fazem apologia à ditadores e à tortura e que disseminam inúmeras fake news, como fica a responsabilidade de pensadores e filósofos como o senhor? Mário Sérgio Cortella – Funciona às vezes, não de maneira arrogante, mas de maneira inteligente e para isso você precisa se preparar, como um sinal de alerta em relação àquilo que pode ser uma regressão da capacidade de solução de nossa convivência por intermédio da reflexão, do raciocínio, do debate e do conflito. Até do conflito, mas jamais do confronto. Por isso é possível que as pessoas tenham crenças, hoje, que neguem a evolução do pensamento científico no ocidente, pessoas que façam apologia em relação àqueles que tenham posturas autoritárias no campo da política pública. Mas não é uma obrigatoriedade, só uma possibilidade. Então é necessário ter uma inteligência maior para lidar com isso. E aqueles que são chamados de intelectuais (...), como é o caso de pessoas do campo das ciências humanas, especialmente, têm que ter a responsabilidade de fazer um alerta para que a gente não degrade nossa capacidade em relação àquilo que são valores de convivência. E que não chegue a rupturas. Nós podemos, sim, ter divergências. Obviamente alguém pode ter a opinião que desejar. O que ele não pode, de maneira alguma, é fazer com que a sua opinião tenha que ser imposta a outras pessoas. Eu não tenho nenhuma dificuldade em aceitar a convivência com alguém que acredita que a terra é plana. Eu só não quero que ele obrigue todos a acharem que é assim. Afinal de contas, a ciência tem valores e construções históricas que são muito mais sólidas do que mera opinião. DIARINHO – Na filosofia, dúvida e certeza praticamente formam um casal. Afinal, tanto para o pensamento humano quanto para as pessoas, individualmente, certeza e dúvida são fundamentais. A partir dessa dualidade surgem soluções para problemas reais tanto da coletividade quanto do indivíduo? Cortella – A ciência, o conhecimento, avançam na dúvida. A certeza é re-interativa. Isto é, com a certeza, eu fico onde estou. Eu não posso só ter dúvidas, mas eu não posso não tê-las. E se eu só tenho dúvidas, eu não avanço. E se eu não tiver dúvidas, eu fico exatamente onde eu estava. O conhecimento científico ele só avança porque ele coloca dúvidas: “Será que é o único caminho?”; “Será que isso tá correto?”; “Será que não há outra maneira de fazer ou pensar?”. Nesse sentido, é preciso trazer à tona um filósofo do século 17 que é Descartes [René Descartes, filósofo, físico e matemático francês], que trabalhava com a noção de dúvida metódica. A ideia de dúvida metódica é aquela em que você não duvida por duvidar, mas coloca a dúvida para dar nossa assertibilidade à tua certeza, à tua afirmação. Por isso, no campo do conhecimento, especialmente, na filosofia, a oscilação quase é um movimento cardiológico, sistólico e diastólico, né? Em que na diástole você vai expandir a dúvida, a capacidade de duvidar, e no movimento sistólico junta isso em torno de alguma reflexão que dê mais base para uma certeza que, mais adiante, também tem que ser duvidada. DIARINHO – A filosofia tem questões clássicas. Uma delas é “o sentido da vida”. Esse é um tema que ainda provoca angústia nos pensadores e às pessoas comuns? Cortella - E precisa provocar. Eu lancei um livro exatamente esta semana chamado “Filosofia e nós com isso?” e eu coloco como ponto de partida que a grande questão da humanidade, em todos os tempos, é o por que existe alguma coisa e não o nada. Isto é, por que as coisas existem ao invés de não existirem? Qual é a nossa razão de ser na vida? Das coisas à nossa volta? Das coisas que sabemos mortais? E, claro, a ciência, a religião, a arte e a filosofia, em todos os séculos buscam responder essa questão. Isso, é: Qual é o sentido da vida? Não há um sentido pronto. Esse sentido vai sendo construído a cada momento, a cada tempo, nas comunidades humanas. Há comunidades que enxergam o sentido como sendo a vida apenas como uma passagem para o um estágio superior, que seria melhor. Há pessoas que entendem a vida como sendo um momento em que você, biologicamente, chega, tem a própria condição e depois fenece, contribuindo apenas para o processo vital (...) Há muitas explicações para isso, mas o que nós não perdemos é a pergunta, que persiste no tempo. DIARINHO - Nessa loucura do mundo atual, em que se vive sempre às pressas, sob um bombardeamento de informações, com relações mais virtuais do que propriamente pessoais, parece haver uma tendência para que as pessoas se individualizem e pensem somente em seus problemas. É a época da negação da coletividade? Cortella– Não necessariamente. Você tem uma oscilação de alguns grupos, especialmente mais jovens, que defendem uma perspectiva mais coletiva da existência. Eles trabalham mais em grupos, têm uma posição mais ecológica, defendem a posição, principalmente no campo do trabalho, do que se chama de coworking [escritório compartilhado] que é um termo que, embora em inglês, tem um sentido muito forte. Pessoas que, por exemplo, em vários estados brasileiros, entre eles Santa Catarina, trabalham com a noção do trabalho cooperativado. Se você observar, boa parte da força da economia do Sul do Brasil vem da ideia de cooperativa. E isso se expande para o centro-oeste e outras regiões do nosso país. Nesse sentido, pelo mundo afora, acho que a gente teve uma diluição um pouco mais acelerada do sentimento de coletividade e uma preservação, um predomínio do indivíduo. Eu não sou avesso e ninguém pode ser à individualidade, mas ao individualismo, sim! Isso é uma postura egoísta em relação à própria existência. Por isso nós estamos hoje num movimento que é mais ou menos contínuo de encontro de posturas que são mais ou menos coletivistas, sem necessariamente ter nisso um indicador político clássico e outros que são mais individualistas, que acham que a regra na vida é cada um por si e Deus por todos. Outros acham que não, que a regra não é cada um por si e Deus por todos, mas é sim um por todos e todos por um. DIARINHO – Temáticas como preconceito étnico, homofobia, meio ambiente e direitos humanos estão na pauta do pensamento filosófico ou entram sob o guarda-chuva de temas mais genéricos para a filosofia, como ética ou coletividade, por exemplo? Cortella– A ética está no pensamento filosófico desde a origem, a partir especialmente do século 5 antes de Cristo, quando a temática era do humano e não apenas do cosmos, da natureza. A partir do pensamento socrático e platônico, e Aristóteles o fará na sequência, com um livro só sobre ética, ela, a ética, vai entrar como um tema só filosófico. A discussão sobre convivência e diversidade terá uma presença maior a partir do século 17, 18, com a filosofia liberal, em especial com John Locke [Filósofo inglês, considerado o pai do liberalismo], que vai ter um tratado que vai falar somente sobre a igualdade, que vai tratar sobre essa temática e o debate sobre as diferenças e o valor da diversidade. O próprio John Locke tem um livro sobre a tolerância. Claro que isso tem a ver com um momento na história onde há conflitos religiosos de grandes grupos na Europa e isso também atrapalha os negócios e nessa hora vem à tona. Mas a filosofia passou a tematizar dentro da ética o tema da divergência, da diferença, da discriminação de um modo mais recente. Isso não era um problema há 50 anos para a humanidade. Mas é uma pena. Deveria sê-lo. DIARINHO – Há uma proposta do governo federal em incentivar as famílias a educarem os filhos em suas próprias casas, retirando do convívio escolar e privando do relacionamento social as crianças. Isso prejudicaria a convivência das próximas gerações com relação a diferentes pensamentos, religiões e culturas? Cortella– No Brasil, o número de pessoas que aderem, que querem aderir hoje à homeschooling, que é essa ideia da educação exclusiva em casa, não é tão significativa, mas é um movimento que vale a pena ser debatido. Eu não sou alguém que tem aderência à essa ideia, acho que estar na escola é uma experiência sócio, cultural e educativa insubstituível. Você criar alguém dentro da família permitirá que tenha os teus valores, o teu modo de pensar, mas há um momento que essa pessoa sairá daquele lugar. Eu, por exemplo, criei meus três filhos e hoje ajudo também com os meus netos, não os colocando dentro de uma redoma, mas preparando para que eles estejam do lado de fora, de maneira mais protegida. Hoje o debate se dá do ponto de vista da nossa Constituição. Teria que haver uma alteração constitucional, dado que é obrigatória a matrícula dentro da nossa educação básica. Nessa hora, o debate é bom, porque ele traz à tona que tipo de perda se tem fazendo a educação só na família ou fazendo só na escola, no nível da escolarização. Por isso é bom, acho que é saudável trazer à tona. Nos Estados Unidos, na América, já se discutiu isso durante muito tempo. Em alguns estados é admissível e em outros não é. Nós estamos começando a esclarecer. Isso é saudável num país que queira debater as suas questões. DIARINHO – Nas últimas décadas encolheu o número de cinemas, teatros e livrarias nas cidades brasileiras. Por outro lado, aumentou o número de igrejas, especialmente as neopetencostais. Como filósofo como o senhor explica esse fenômeno e as consequências dele? Cortella– Uma das coisas mais importantes é que o Brasil se urbanizou numa velocidade inédita na segunda metade do século 20. Exceto a União Soviética, quando se foi obrigado a fazer a migração da população naquele movimento stalinista horroroso, o Brasil passou durante 50 anos uma inversão da população. Se olhar em 1950, 70% da população vivia ou no campo ou em cidades muito pequenas. Hoje é exatamente o inverso. Hoje nem 20% da população tá em áreas rurais ou em cidades muito pequenas. Isso significa que valores que vieram do campo se tornaram presentes nas cidades, como a música sertaneja, depois o sertanejo universitário, um tipo de religiosidade marcado pela ideia do demônio, da noção de que aquilo que acontece contigo é fruto do que está fora de ti. Uma religião muito mais voltada para o interior e não para o campo social. Então há todo um movimento interfatorial. Não dá pra explicar por uma única razão. Agora, uma parcela disso não necessariamente está vinculada à diminuição da arte, da cultura. Ao contrário. A cidade de São Paulo, onde eu moro, tem hoje um número muito maior de teatros do que tinha há 40 anos. Tem um número muito maior de cinemas do que tinha. O que mudou foi a localização. Inclusive, tem uma parte de cinemas de rua que se transformaram em igrejas. DIARINHO – Alguns pensadores têm denunciado medo de se posicionar no Brasil atual, por se sentirem ameaçados, especialmente através das redes sociais. O senhor já passou por algum tipo de ameaça ou constrangimento? Cortella - Por várias vezes, nas redes sociais, houve contenda e retórica furiosa contra mim, sem que ultrapassasse o mundo virtual. Costumo distinguir opinião de acusação e, quando alguém me chama de imbecil, socialista, idiota, sofista etc., é mera opinião, não precisando de resposta. Contudo, se alguém me chama de ladrão, corrupto etc. é acusação e aí terá resposta de natureza legal. DIARINHO – A prefeitura de Itajaí investiu alguns milhões no programa escola de Inteligência, alegando investimento na saúde emocional dos estudantes. Que efeitos práticos os pais podem esperar no desempenho escolar dos filhos? Cortella– Eu não saberia dizer. Eu não conheço o método de maneira detalhada. Eu seria superficial. Seria achologia eu dizer qualquer coisa. Eu sei que é importante em qualquer escola, qualquer cidade, se preocupar com a questão da formação emocional das crianças. Como ela é feita a partir do projeto, qual é o vínculo com o município, com a municipalidade de Itajaí, eu não teria como opinar. “Aqueles que são chamados de intelectuais (...), como é o caso de pessoas do campo das ciências humanas, especialmente, têm que ter a responsabilidade de fazer um alerta para que a gente não degrade nossa capacidade em relação àquilo que são valores de convivência” “Costumo distinguir opinião de acusação e, quando alguém me chama de imbecil, socialista, idiota (...), é mera opinião, não precisando de resposta

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