Com o violão nas costas, calçando alpargatas de pano, o tradicional pala (aquela manta da gauchada) e, nas mãos, a inseparável garrafa térmica e a cuia de chimarrão, Yamandu Costa recebeu a equipe do DIARINHO no estúdio Café Maestro, no bairro da Ressacada, em Itajaí. A entrevista rolou no dia 28 de agosto, um dia antes do show que faria no Teatro Municipal, durante o 6º Seminário de Violão de Itajaí. Em uma hora de conversa, com direito a muito chimarrão, risos e uma palhinha, ele contou para os jornalistas Dayane Bazzo e Victor Miranda um pouco de sua trajetória profissional, que se confunde com sua própria história de vida. O violonista praticamente nasceu em um palco, sempre acompanhando os pais, Algacir e Clary Costa, que tinham um grupo regionalista em Passo Fundo, sua terra natal. O músico popular, que namora com a música erudita, lotou o teatro peixeiro na quinta-feira da semana passada, sozinho no palco, com seu violão sete cordas e seu talento nato. Os cliques são de Felipe Schürmann.
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DIARINHO O seu álbum Continente surgiu de uma maneira peculiar. As músicas foram feitas ao longo de uma turnê pelo mundo, trazendo referências de vários lugares, de várias culturas. Como surgiu a ideia de chamar o Guto Wirtti e o Arthur Bonilla pra esse novo trabalho?
Yamandu Isso tudo já tem um tempo. Eu vou gravando as músicas e vou deixando elas no forno, até dar o tempo certo de lançar. Ele foi gravado em 2009, faz um tempinho. A música que a gente faz é atemporal, então você pode esperar pra lançar os trabalhos. E isso na verdade é uma homenagem a uma formação muito comum na América Latina que é o trio de violão. Uruguai, Argentina, até o México, tem essas coisa dos mariachis [aqueles mexicanos bigodudos, com sombreiros, que cantam e tocam], os cantores do Peru, toda essa música latino-americana é acompanhada pelo trio de violões. O que não é nenhuma novidade pra gente no sul do país e que o Brasil não conhece. A gente tá ligado a outro tipo de regional. E a minha intenção foi homenagear essa sonoridade e a minha intenção foi compor muitas coisas com o Guto na estrada. Numa certa feita, a gente tava na Áustria, fazendo uma turnê, e precisávamos comprar uns equipamentos musicais e fomos numa loja. Chegando nessa loja, o Guto encontra um baixolão, um violão gordo, lindo, não esses baixolões de música pop não. Um baixolão de corda de náilon, diferente. Aí ele pegou o baixolão, eu peguei um violão que tinha por perto e a gente começou a fazer um som e já começou a sair coisas. E foi um pouco da desculpa desse trabalho. Isso foi em 2007 ou 2008, que a gente começou a compor os temas até gravar. Outra questão também é o nome Continente, uma homenagem ao Érico Veríssimo, um cara que falou da terra da gente de uma maneira tão universal.
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DIARINHO Como você vê os festivais de música nativista, que de certa forma não perderam a força, com o passar dos anos, mesmo diante do crescimento das gravadoras do Rio Grande do Sul e das redes sociais?
Yamandu É muito interessante isso. É uma cultura à parte do Brasil o festival nativista. Eu vejo isso como muito positivo. Tem muita gente que se queixa às vezes da produção, que fica uma coisa um pouco pastosa, um pouco repetitiva. Mas eu acho que, se as pessoas pensarem na profundidade social disso, é espetacular. A cidade se mobiliza pra receber os artistas, a sociedade se prepara realmente dentro daquela época pra receber quem tá chegando. Fora a companheirada que você encontra. No meu caso, como eu participei de muitos, é uma sensação de amizade que nunca mais eu tive viajando pelo Brasil. O que mais se parece com isso são os festivais de violão, onde você encontra colegas de várias partes do mundo. Mas os festivais nativistas têm um clima que eu acho muito positivo. Acho que essa música, de alguma maneira, ela se isolou do Brasil, infelizmente, pela concepção das canções. [Muito temático?] Muito temático, muito agauchado demais, com gírias locais, de uma maneira que a gente não entende. E isso eu acho uma pena, porque as pessoas não conhecem. E o gaúcho é um bicho tão ufanista que tá cagando e andando pra isso [risos].
DIARINHO A sua gravadora, Biscoito Fino, optou por um modelo de produção diferenciado. Um conceito estético especial, que costuma lançar, dentro de um segmento específico, um nicho, deixando de lado a concepção de grandes vendagens pra conseguir lançar nomes que têm uma menor visibilidade, mas que, ao mesmo tempo, chegam ao estrelato dentro daqueles segmentos. Como é essa parceria com a gravadora?
Yamandu Esse é um dos conceitos. Na verdade, começou assim como você está falando e depois não teve jeito, começou a pegar grandes estrelas como [Maria] Bethânia, Chico [Buarque]. Alguém tem que pagar as contas daquele troço [risos]. Mas é um projeto muito bacana da Kati de Almeida Braga, projeto subvencionado pelo Banco Icatu. É um grande mecenato, e muito bem intencionado. É assim que eu vejo e tenho esse trabalho com eles há anos já. Eu me lembro que, antes de começar a Biscoito, tinha um cara que eu conhecia, um cara político ligado ao [Mário] Covas, pelas rodas musicais, e ele me falava: vai rolar um projeto chamado Biscoito Fino, que é o teu perfil. Então te prepara porque sem dúvida nenhuma você vai ser parceiro. E assim foi. Ontem [28 de agosto] eu lancei o CD no Rio, eles tiveram lá, fizeram um vídeo release, um teaser, eles criam nome pra tudo [risos]. E enfim, acho que vai ao encontro do que está acontecendo, que é a morte do CD, que está cada vez mais elitista. É um novo caminho, não tem volta. Eu já estou me preparando de alguma forma pra isso. Eu produzo muito, eu gravo em torno de três, quatro discos por ano. Quando eu tenho ideia, o negócio vai saindo e eu não perco. Já estou pensando em ter um portal, no meu site, com essas novas produções, e atingir diretamente as pessoas. Então você quer ouvir a minha música, você entra no meu site; também desenvolver outras mídias digitais. Tava falando de desenvolver outro tipo de mídia que se acople, uma mídia menor, mais portátil, ligada ao computador. Mas o que nos interessa tá bem acima dessa invencionice toda, né, que é a música.
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DIARINHO Você sente o ritmo das payadas [verso improvisado] na maneira como você constrói as suas músicas, ou mesmo nas suas performances? Você acha que hoje haveria lugar para um novo Jaime Caetano Braun [músico gaúcho que faleceu em 1999]?
Yamandu Faz muita falta alguém do nível do Jaime Caetano Braun. A tradição da payada vem do cancioneiro francês. Isso aí a gente vê bem disseminado no rap. É uma linguagem meio universal. Cada povo tem o seu jeito de falar o que sente. Eu acho que faz muita falta ter um cara do nível do Jaime. Eu tive a sorte de conhecer ele, era amigo do meu pai. Eu acho que faz muita falta. São pessoas pontuais, que quando vão embora deixam um vazio. [E você sente essa influência no seu trabalho?] Eu sinto porque um músico popular, no meu caso, a gente toca cantando por dentro, a diferença é essa. Qualquer fraseado que você faça, improvisando, enfim, a maneira que você se comunica com a plateia, como se eu tivesse cantando aquilo. Então a canção tá muito ligada a mim. É a influência da payada, sem dúvida. É a improvisação no verso. E a gente faz a improvisação no instrumental.
DIARINHO Você tem um repertório muito abrangente. Mas hoje, no seu cotidiano, que tipo de música lhe atrai mais? Erudita? Popular? O que você costuma ouvir?
Yamandu Eu sou um violonista popular que, cada vez mais, namora com a música erudita. Com o acabamento da música erudita, né? Não tenho a pretensão de rotular isso. Por exemplo, estou indo semana que vem tocar com a orquestra de Leipzig, na Alemanha. É um concerto que eu fiz, que se chama Passeio, minha mulher [Elodie Bouny] escreveu. [Tua composição?] É. Minha mulher que escreveu isso, porque eu não tenho a técnica de escrever. Ela fez a orquestração do tema e eu fiz a peça inteira pra violão, acordeon, cordas e sopro. É uma música que tem uma temática um pouco fronteiriça, gaúcha e tal. Tem uma citação do Negrinho do Pastoreio. São três movimentos, e eu adoro essa linguagem, essa mistura de linguagem. Acho que a música erudita também tá necessitando de alguém que dê uma balançada nesse meio. É formal demais. Eles precisam dar uma reciclada no público deles. É uma coisa que, naturalmente, com a chegada de novos maestros, figuras mais extravagantes... [Que buscam aproximar o público da música erudita?] É. Fazer não uma música vendida, mas que tenha uma empatia com as pessoas, que tenha uma interatividade. As pessoas gostam disso. Na verdade, o médio público sai pra se ver. Ele sai pra dizer que foi lá te ver e não pra te ver realmente. É engraçado.
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DIARINHO Você consegue aliar bem a interpretação e uma pegada rápida, às vezes apontada por alguns como um som sujo. Você se preocupa com esse tipo de crítica? Como você avalia o som que sai do seu violão?
Yamandu Isso depende muito do ponto de vista. Um cara com a formação que eu tive, uma formação de rua, já toquei guitarra de rock, jazz, pra caramba, frequentei muitos meios, toquei música gaúcha de baile, música solada na guitarra, música de alemão, toquei de palheta anos, criei minha maneira de tocar da vida, de uma maneira muito natural, nunca tive formação, não tinha saco. Eu me lembro que, quando eu tinha 11 anos, já tinha uma facilidade, já tinha uma técnica boa e o pessoal queria me mandar estudar com um cara chamado Carlevaro [Abel Carlevaro, falecido em 2001], que foi um professor muito bom, uruguaio, um cara que desenvolveu métodos de mão direita, mão esquerda, um cara muito importante no mundo do violão, mas caretérrimo, ainda bem que não me mandaram estudar com esse cara. Eu vejo os alunos dele hoje em dia, as pessoas respiram lendo, até a respiração é lida, então eu prefiro essa coisa espontânea. Eu vejo vídeos meus com 20 anos e acho uma droga, muito ruim, mas era eu ali, tentando aprender e tentando me comunicar com as pessoas. Agora tenho tempo pra começar a limpar, vou ficando mais maduro, mais calmo. Mas acho muito legal você ter a coragem também de descobrir as coisas, meio por si, e amadurecendo com o tempo. E essa coisa do som sujo depende muito, o que significa som sujo? Quando você escuta o violão do Baden Powell, por exemplo, não é um violão, é uma orquestra de percussão. Você não tá interessado no violão, isso é um instrumento, um pedaço de pau que você se comunica com ele, e ele se comunica com as pessoas. O que sai dele é a intenção que tem na sua cabeça. Mas são as pessoas que tratam esse instrumento como um Deus. O pessoal da música erudita é assim: nossa, meu violão, tem gente que fica passando paninho, encomenda violão que demora 10 anos e não deixa ninguém pegar, é uma frescura, isso é um pedaço de pau [diz apontando para o seu violão]... Tem que ser um troço que te faz comunicar com o outro, você fica dando importância, dá pra fazer churrasco com um troço desse [risos]. Não tem que ficar dando muita importância, o que importa é o que tem dentro de você. [Aliás, essa crítica é feita pelo povo erudito, do formalismo que existe nos conservatórios da turma do violão clássico. Você já ouviu essa crítica outras vezes?] Já ouvi, mas não me importo, porque não é o que tô querendo pegar. Eu comecei a me aproximar muito mais desse mundo erudito depois que casei com minha atual mulher, que é uma francesa, violonista clássica, super formada nesse meio, estudou com todos os grandes na Europa. [Ela te acompanha nas tuas turnês?] Não, agora temos dois filhos, não tem jeito. De vez em quando a gente vai, quando saio de férias, ou quando tem alguma coisa que vamos tocar juntos, mas raramente. Moro no Rio com ela e eles. Comprei uma casona lá pra gente ficar com eles.
DIARINHO Você busca informações sobre a música que rola nas cidades onde se apresenta? Fez essa pesquisa sobre Itajaí?
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Yamandu - Já vim algumas vezes aqui. Tem muito tempo que não venho aqui dentro do festival [de Música de Itajaí]. Mas tem um pessoal que toca choro aqui também, que eu sei. É uma cidade muito especial dentro de Santa Catarina, uma cidade que tem um foco cultural bem diferenciado. Um público antenado, que tá ligado no que tá acontecendo no Brasil e isso é muito diferente. Às vezes você vê cidades ricas do Brasil que não têm a menor preocupação com isso. Eu venho de uma região do Brasil, são cidades cheias da grana e tal, no interior de Minas existem muitas cidades com potencial enorme que é uma estagnação, as pessoas trabalham, vão pra casa ver novela e dormir. Quer dizer, não existe uma consciência, as pessoas entram num mecanismo do interior que não vão ao cinema, não existe essa cultura da interrogação: o que tá acontecendo no mundo? Que tipo de cinema tá passando? Isso é uma coisa que a gente sente que existe de alguma maneira [em Itajaí]. Também uma cultura local forte que é um barato, que eu adoro, e esse anseio por arte, que é uma coisa muito positiva.
DIARINHO O improviso é uma de suas características. Você conseguiria tocar engessado? Deixando de lado o improviso?
Yamandu Às vezes toco, depende da formação. Quando a gente vai tocar com orquestra, normalmente as peças são 99% escritas, e aí não seria engessado, você tem que tocar o que tá escrito ali pra encaixar com a orquestra. Uma peça é toda trabalhada, toda pensada e, no resultado, é outro tipo, é uma outra maneira de fazer música. Por exemplo, ano que vem vou tocar, em abril, um concerto, meu Deus do céu, vou começar a estudar essa música, que é um clássico dentro do repertório do violão. Tem uma partitura ali que você tem que obedecer, é a obra do compositor, o cara teve horas e horas matutando, pensando naquilo. Depende das formações. Tem formações minhas que são mais caretas nesse sentido. Tem muita gente que tem talento e a facilidade acaba atrapalhando, porque o ego normalmente é muito grande, então tipo assim, vamos tocar o quê? Ah, não importa, a gente chega lá e toca. Eu não sou assim, acho isso um desrespeito com o público. Já vi shows de grandes jazzistas no mundo e acho isso de uma grande pretensão artística. Essa coisa de sou um gênio, vou chegar lá e quebrar tudo é uma bobagem pra mim. Os trabalhos que eu tenho são ensaiados, tem uma concepção, tem um início e tem um final de cada formação que eu quero. O Continente [o novo trabalho] tem uma cara, tem toda uma historieta ali contada dentro dele. Como eu também convido músicos populares pra tocar comigo, que também improvisam, a gente tem uma forma inteira da música, e dentro dessa forma tem algumas brechas de improvisação, mas nada que fique muito chato também, porque improvisação é uma linguagem muito americana, é um monólogo. Então tem que ter cuidado com isso, senão fica muito chato.
DIARINHO Você se sente picado pela tal mosca azul da qual fala o Kledir Ramil [da dupla Kleiton e Kledir]? Uma referência a este viver de música, pela música, acreditando naquilo, custe o que custar, acima de todas as coisas... Uma espécie de loucura?
Yamandu Eu acho que quem tem essa percepção é quem teve algum tipo de escolha. Eu não me dei conta de nada e já tava no meio desse turbilhão. [Você não teve escolha?] Não, e ainda bem, porque tem gente que não sabe o que fazer até hoje. Tem uns caras com 40 anos de idade e fazem um troço querendo fazer outro, é uma tristeza. Eu consegui já de cara ver o que eu iria fazer da vida e eu tinha uma certa facilidade pra fazer. Então é muito natural pra mim, não vejo nada de muito especial nisso, é uma maneira de viver, é natural.
DIARINHO Além de Gilberto Monteiro e Lúcio Yanel, alguns outros nomes da cultura sul-rio-grandense o influenciaram? Sob quais aspectos?
Yamandu Sim. O Gilberto foi amigo do meu pai, meu pai tocava com ele. É um músico de uma inspiração... Incrível a ligação que ele tem com a música, um negócio muito especial, um sentimento de profundidade, as dinâmicas que ele faz, um músico único no planeta. Outras figuras como Luiz Carlos Borges, que foi meu grande mestre, o Lúcio Yanel, Borghetti [Renato Borghetti], colegas mais próximos agora, que a gente convive mais como o Guto Wirtti, que é parceiro também de longa data, Hamilton de Holanda [bandolinista], colegas que estão sempre perto. São amigos que vão ajudando a gente a crescer no caminho, a gente vai aprendendo um com o outro cada vez mais, e poder ter essa troca musical é um privilégio.
DIARINHO Como você se sente em meio a um cenário em que há pouca integração cultural do Brasil com a América Latina, mas em que você possui, talvez por conta de representar um segmento de raíces mas cercanas, seu nome atrelado a um grande reconhecimento, principalmente dentro do Mercosul?
Yamandu As pessoas se identificam com isso, veem também que eu tenho essa intenção. Sempre tive essa intenção e acho que, de repente, vai ser a melhor contribuição que eu posso aportar aqui no Brasil, de aproximar a escola do violão, não só do violão, mas da música brasileira com a música latino-americana. Existe essa barreira idiomática que atrapalha tudo mesmo, as pessoas não entendem nada. [Você atribui isso à barreira idiomática?] Muito. Ao nosso preconceito da costa, o povo brasileiro quer olhar pra Europa. Meu Deus do céu! É uma coisa triste! Se você olha pra dentro, a música peruana, a música colombiana, cada coisa linda, venezuelana, a riqueza que é. A música argentina, até hoje as pessoas acham que é tango, só tango. Se você entra na Argentina, vê que é um país tão rico quanto o Brasil, de sul a norte. Se você chega no nordeste da Argentina é uma loucura, um povo que fala guarani misturado com espanhol, coisa mais linda. As pessoas não têm noção de nada disso e eu sou filho de um apaixonado pela América Latina. Meu pai era um cara que recebia gente em casa, delegações que vinham dos Andes tocar. Meu pai construiu uma casinha atrás da nossa casa em Passo Fundo pra receber essa moçada. Então eu me criei ouvindo esses ritmos todos que vêm da América Latina e é uma coisa que eu tenho paixão. Acho que o Brasil ainda não tem a menor compreensão. O Brasil não se sente latino-americano, isso é uma pena danada.
DIARINHO O trabalho de intérprete da sua mãe, Clary, exerceu alguma forma de incentivo na forma de apresentar suas músicas, ou foi a teoria e a prática musical como aprendizado, por conta do seu pai, Algacir Costa, seu professor de música, que construiu a sua caminhada? As duas influências foram igualmente importantes?
Yamandu Muito. Minha mãe até hoje canta. Produzi um disco dela uns três anos atrás no Rio, todo bem cuidado, com grandes músicos. Ficou tão bonito, o disco. É um disco regional, mas aberto na concepção dos arranjos, um negócio bem bonito. [Você participou da produção?] Não, eu toquei e cantei uma faixinha, um trechinho de uma música que a gente canta de duo. A minha mãe sempre foi uma artista, uma pessoa do palco, até muito mais que meu pai. Meu pai era o cabeça, era a máquina pensante da estrutura, ele era o cara que tinha a teoria, que dava aula, que formou tantos músicos. Meu pai era sério pra caralho e formou muita gente. Era um educador nato, escreveu métodos pra instrumentos, pra acordeon, pra trompete, era um instrumentista, tocava instrumentos bem diferentes, era um cara extremamente ligado à coisa da teoria. Desde muito pequeno me incomodava muito com isso. Eu sempre quis a prática, ele ficava até bravo comigo: Você vai ser um papagaio, podia ser um compositor, vai ser um solista, um medíocre, tem que ser um compositor, olha a cabeça pequena que você tem!. Eu não tinha compreensão disso. Hoje em dia é que a gente se dá conta. Se tivesse aprendido com ele um bando de coisa, de repente hoje teria mais facilidade de compor outras coisas. A minha mãe tem um talento natural pra música, sem saber de nada. Cantadora, pessoa de comunicação do palco e tal. Então são figuras muito importantes na minha formação, eu me criei vendo isso. Eu me lembro da minha mãe atrás de um palco, naquelas friagens lá na fronteira, eu tinha uns seis, sete anos acho, e foi o primeiro grande público que encarei. Tinha umas cinco mil pessoas, alguma coisa assim, e eu ia cantar e tava louco de medo. Era um palco alto e minha mãe me pegou e disse: Agora o mundo é teu, todo mundo tá olhando pra ti, sobe naquele troço e arrebenta, entra com raiva.
DIARINHO E o diálogo que você faz entre a bossa-nova e a milonga, o choro e o chamamé, de que maneira se desenvolveu? Foi natural?
Yamandu São coisas que eu costumo dizer que eu tento reproduzir o que sempre gostei de ouvir e aí são coisas variadas, desde a música do litoral argentino até o choro, até a música do Nordeste e minhas parcerias com Dominguinhos. Eu gosto de tudo isso e acredito num fio condutor que existe dentro de uma tendência ibérica, que nos pega aqui no Brasil também, que é a música argentina, o choro, o fado, o jazz manucho, que é aquele jazz cigano. Pra mim são músicas que tão conectadas, elas têm a mesma onda, a mesma vontade de fazer, cada uma com seu sabor, mas que tem essa coisa meio característica de cada povo. E isso é uma coisa que me encanta, esse tipo de linguagem é que me interessa, que pra mim é a mesma coisa que se encaixa dentro da mesma intenção musical. Tudo isso que eu posso namorar com a música vou fazendo, vou gostando, vou me dedicando, aprendendo mais de cada escola, de cada região, são coisas naturais. Bossa-nova, por exemplo, não é um movimento que me interessou muito. [É que o Baden Powell era um caso à parte]. Os grandes caras da bossa-nova só namoraram com ela, passaram por ela, não deram muita bola pra ela. O próprio João Gilberto fala que não faz bossa-nova, que faz samba. Acho um movimento bem bolado, americanamente bem bolado. Então não me interessa muito, eu sou do país do samba, do choro.
DIARINHO Raphael Rabello, reconhecidamente um dos maiores violonistas do país por sua técnica e performance como um todo, ao mesmo tempo se mostrou, ao logo de sua carreira, um grande mestre do acompanhamento. Exemplo disso são as suas parcerias com Ney Matogrosso, onde ele mostra toda a sua técnica, sem competir com o intérprete. Você, que é um mestre da música instrumental, gosta de acompanhar cantores?
Yamandu Mais ou menos. Isso é uma coisa que é um talento que você tem que ter. É engraçado que existe na escola de formação flamenca, muito interessante isso, a gente não passa por isso, mas o cara que vai tocar flamenco, até ele chegar a ser um violão solista, ele tem que aprender a acompanhar o baile e o canto, é muito legal isso. A gente não tem essa noção. E isso dá um preparo rítmico, de concepção geral do que significa essa arte, e o Brasil é muito deficiente nesse ponto. A escola do violão acompanhante fica na mão de poucos mesmo, e o Raphael pra mim foi o maior deles. Meu Deus, como acompanhava! Agora, pra acompanhar, tem que se ter um talento muito próprio, como ele tinha, e eu não me vejo muito bem nessa linha. Não é uma coisa que eu busco, por enquanto não. Agora tenho namorado com canções, tenho feito algumas canções com o Paulo César Pinheiro [compositor carioca], que eu devo fazer um trabalho ano que vem, chamando alguns cantores pra cantar. Então, de repente, vou até me esmerar um pouco nisso, até, de repente, vou cantar alguma coisinha. Algumas músicas que ele fez, falando do sul pela primeira vez, com temáticas mais gaúchas, são bem diferentes. Mas o cara de acompanhar foi o Raphael, o Baden acompanhava muito bem também. [Citamos o Ney Matogrosso porque ele tem pelo menos dois álbuns com o Raphael, onde ele consegue mostrar um arranjo fantástico e ao mesmo tempo ele não compete com o cantor]. O Raphael tem uma maturidade, um músico que quanto mais passa o tempo mais impressionado eu fico com ele. Ele com 13 ou 14 anos tava pronto, mas pronto mesmo. Coisas básicas de andamento, de intenção de fraseado, coisas que a gente vai pegando depois, tem coisas que eu tô aprendendo agora que com 13 anos ele fazia. Não tô falando de tocar, é de você entender a música que tá acontecendo. É a propriedade do tocar, fazer um ré maior, mas tipo assim, um ré maior do Dorival Caymmi, aquele ré maior que ninguém faz. Aquele cara tem aquele som, tem toda aquela carga atrás daquele aporte e o Raphael tinha isso desde criança. Eu tenho um amadurecimento natural, mais parecido com todo mundo, vou indo devagarinho. Vou aprendendo as coisas e tal, com o tempo, com a humildade certa. Não é ser modesto, mas ter a humildade que te ajuda a crescer a cada dia. Então ele é uma referência. Imagina, ele morreu com a minha idade, deixou uma obra enorme, uma pena. Foi um cometa que passou, hoje estaria com 50 anos.
DIARINHO Teu nome em guarani significa senhor das águas e você navega pela música folclórica, jazz, chorinho e erudita. Pra onde o barco da vida vai te levar?
Yamandu Ah, não tenho a menor ideia! É meio sem destino. Quero que chegue assim num final da carreira, depois de já ter uma coisa grande, mas que tenha uma obra com coerência, isso é o que queria. Meio pretensioso, mas vamos ver. [Uma obra coerente?] É, uma obra digna, que fique, que ajude as pessoas a terem um discernimento que, quando você vai fazer esse negócio de música, as pessoas acham que ah, é legal ser artista, e não tem nada a ver com isso. Quando você se dá conta do que significa pras pessoas o que você faz, aí você sente o peso e a felicidade por poder levar música pras pessoas dessa forma. E ter responsabilidade cultural! Acho que é uma coisa bacana que o tempo vai mostrando que você tá pelo caminho certo, tava com a intenção certa, tava com uma boa onda, queria passar uma coisa boa pras pessoas.
Eu sou um violonista popular que, cada vez mais, namora com a música erudita
Na verdade, o médio público sai pra se ver. Ele sai pra dizer que foi lá te ver e não pra te ver realmente. É engraçado
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