Itajaí

A arte da construção caseira de barcos

Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]

Por Victor Miranda

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Ao longo da vida as pessoas alimentam os mais variados sonhos. Pode ser a aquisição de uma casa ou de um carro, viajar para lugares distantes, a realização profissional, ou até construir o seu próprio barco. Nessa reportagem o DIARINHO procurou histórias de pessoas que despertaram para isso pelos motivos mais diversos, seja a paixão pelo mar, a experiência de prestigiar as grandes regatas que acontecem em Itajaí ou mesmo viajar pelos oceanos.

Embora não existam dados oficiais sobre a construção naval amadora, parece que essa arte está sendo resgatada no Brasil. Recentemente a série “A grande família”, da rede Globo, mostrou a saga de Lineu (personagem de Marco Nanini) que, depois de aposentado, começou a construir o seu próprio veleiro. As dificuldades foram surgindo e quem aparece para aconselhar o chefe da família Silva foi, nada mais nada menos, que o navegador Amyr Klink, em uma participação especial nesse episódio da série de televisão.

Na região de Itajaí a reportagem encontrou várias pessoas que partilham desses sonhos, construindo veleiros de madeira, dos mais diferentes tamanhos e modelos. O estudante de Construção Naval da Univali, Alexandre Nascimento Gomes, de 34 anos, o Mineiro, como é conhecido, é natural de Ubá (MG). Ele começou a fabricar o seu veleiro, modelo bus [projeto americano originalmente feito para lancha motorizada e adaptado para vela], em março deste ano e sonha colocá-lo na água até o final do mês de novembro, a tempo de curtir a regata Jacques Vabre.

Alexandre escolheu um modelo pequeno, pesando cerca de 80 quilos, com 3,4 metros de comprimento, pra poder levá-lo em cima de seu carro. Ele desenvolve seu projeto no Laboratório de Construção Naval (Lacon) da Univali. O universitário investiu cerca de dois mil reais em material. O veleiro é feito de compensado naval e resina epóxi [que reveste a madeira], tudo com muito perfeccionismo e dedicação. “O que não pode acontecer é perder o foco que é ter o barco pronto para velejar. isso consome o tempo e mexe muito com o seu psicológico”, adverte o construtor.

O coordenador do curso de Tecnologia em Construção Naval da Univali, professor Roberto Barddal, diz que não precisa ser nenhum grande entendido para construir um barco mais simples. “Tudo vai depender do tamanho da embarcação e do bom senso”, garante.

Mesmo assim, Barddal adverte que é muito importante seguir um projeto elaborado por um engenheiro naval e utilizar as técnicas corretas para a produção da embarcação. “Os erros mais comuns na construção artesanal de barcos de madeira para pesca, por exemplo, é a madeira estar em contato com a água. A madeira tem que ser completamente isolada da água, por isso usamos o revestimento com resina para garantir a durabilidade da embarcação”, explica o professor, que trabalhou 30 anos com construção naval.

Alexandre trabalha na construção do seu barco nos horários de folga, já nos momentos de labuta trampa para um aposentado que também tá fazendo um veleiro de seis toneladas. “É um barco muito grande. O seu Augusto estudou muito o projeto e não abre mão de nenhum detalhe”, conta o estudante que trabalha há dois anos na construção de um veleiro.

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Uma vida dedicada à realização de um sonho: velejar é atitude!

É no galpão onde ficava o antigo CTG Estância do Litoral, na avenida Prefeito José Juvenal Mafra, próximo ao aeroporto de Navegantes, que encontramos o engenheiro cartográfico aposentado José Augusto Alves de Souza, 66 anos. Seu Augusto, como é conhecido, é de São Paulo, e há 10 anos vive com a simpática esposa Naomi Gevaerd, artista plástica e escritora. O casal veio de mala e cuia para o litoral catarinense para construir um veleiro, modelo catamarã [embarcação com dois cascos]. Eles pretendem passar o resto da vida velejando pelos sete mares.

Para o excêntrico construtor naval, as pessoas que encaram o sonho de construir o seu próprio veleiro têm duas coisas em comum: são amantes da natureza e são fascinados pelo mar. Perfeccionista ao extremo, seu Augusto considera que a questão econômica é também um motivo bem plausível para encarar a construção de um barco. “Comprar um barco pronto pode ultrapassar, e muito, a casa dos milhões de reais, euros ou dólares”, afirma.

O veleiro deve levar ainda um bom tempo para singrar os mares. “Acho que deve ficar pronto em um ano e pouco”, estima seu Augusto.

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Quando tudo começou

O sonho começou bem cedo, aos cinco anos de idade, quando seu Augusto teve o primeiro contato com os barcos do lago do Ibirapuera, em São Paulo. Mas a oportunidade de começar a construir o seu próprio veleiro ainda estava longe de acontecer.

O construtor não é marinheiro de primeira viagem. Ele conta que já participou de algumas excursões pelo litoral brasileiro, conheceu a costa argentina e foi até o mar do Caribe integrando a tripulação em barcos de amigos, experiências que deram mais fôlego à sua empreitada. “Quero fazer um barco bom, marinheiro [preparado para enfrentar as dificuldades do mar], leve e seguro”, diz.

O projeto

O catamarã de 50 pés, conta com quatro acomodações para casais e duas para solteiros. Com os dois cascos e boa parte da estrutura prontos, o galpão, que já acolheu inúmeros amantes da tradição gaúcha, hoje parece pequeno para a embarcação. O carro de seu Augusto fica debaixo do barco, mas caberiam ainda mais cinco veículos de passeio, devidamente manobrados.

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O projeto foi adquirido há mais de 20 anos e contou com a ajuda de um amigo que era coordenador do instituto de Pesquisas Tecnológicas (ITP) da USP. “Lá desenvolvemos o projeto de um barco forte, leve e confiável”, conta orgulhoso. Mas o plano de linhas foi feito por um projetista alemão chamado Herbert Fischer, que pensou em um barco com capacidade para 10 tripulantes viajarem os sete mares com autonomia de vários dias em alto-mar. “Trata-se de um projeto único. É como costumam dizer, um barco com alma”, considera o dedicado construtor.

Seu Augusto já atraiu a atenção de muita gente, inclusive do meio acadêmico. Tanto que ele já foi convidado a dar uma palestra em uma aula inaugural da USP e também na UFSC, falando sobre a construção naval amadora, as características de seu veleiro, que, ao contrário da maioria dos estaleiros que utilizam o aço, tem como matéria-prima a madeira e a resina epóxi. Além disso, alunos de escolas municipais já visitaram o galpão para conhecer o grande empreendimento do simpático casal.

Sem ter definido ainda o nome do barco, Augusto considera que uma embarcação de cruzeiro deve ter o nome forte e de fácil compreensão. isso facilitaria a vida dos tripulantes na chegada em países distantes. “E tem que lembrar bem o nome da nossa terrinha, pois todo mundo que faz um cruzeiro como esse fica com um grande sentimento de patriotismo”, explica.

Rui Rozales, aluno de Construção Naval da Univali, trabalha com seu Augusto juntamente com dois outros colegas, um deles o Alexandre, do início do texto. Ele já tinha experiência de outros estaleiros, como projetista, e conta que está aprendendo muito. “A construção amadora é muito diferente porque não tem aquele ritmo de produção e prazos como a gente vê nos estaleiros”, conta.

Quanto estiver pronto para ir para a água, seu Augusto terá que arrebentar a parede do galpão para poder retirar o barco e levá-lo para o mar, onde deverá velejar por muitos e muitos anos.

O investimento

O projeto é feito totalmente com recursos próprios, dinheiro que juntou ao longo de sua vida, sempre pensando em concretizar o sonho. “A gente investe uma vida, por isso eu acho que não tem preço”, diz o aposentado, que prefere não revelar o valor de seu investimento.

Seu Augusto considera que o Brasil não tem tradição em construir barcos de madeira moldada. Para mandar fazer o barco dos seus sonhos, seu Augusto diz que teria que ir pra Europa e gastar muito dinheiro. “Eles pegariam o projeto e me dariam um prazo para concluí-lo e esse é ponto central: tirariam o meu prazer de fazer”, ressalta. Segundo ele, se fosse encomendar um projeto do mesmo porte que o seu na Europa, ele teria que desembolsar cerca de dois milhões de euros. “Eu mesmo fazendo, tenho a certeza que terei um barco mais forte, mais leve, adaptado para cruzeiro e bem mais barato”, diz.

A companheira

Naomi é a grande parceira de seu Augusto e não vê a hora de navegar no catamarã do marido. Ela já velejou longos trajetos com o marido em veleiros de amigos, mas diz que “é como morar na casa da sogra”. “Vou ter o meu barco e isso significa poder escolher o roteiro e não terei que seguir as regras do capitão”, brinca a senhora que espera reunir toda a família, filhas e netos nas aventuras marítimas.

O casal abdicou da vida de conforto em São Paulo para viver dentro de um galpão, onde adaptou uma divisória que forma os cômodos da residência. Eles têm duas filhas, uma que vive nos Estados Unidos e outra em Curitiba, no Paraná. “Naomi é minha companheira e grande parceira. Ela é que cuida da parte logística e administrativa do projeto”, ressalta o construtor.

Associação Náutica incentiva quem quer fazer seu próprio barco

Não é qualquer um que dispõe de tempo e recursos para construir um barco como o seu Augusto. Mesmo assim, o sonho de construir o próprio veleiro, pode se tornar realidade em poucos meses em um projeto desenvolvido pela associação Náutica de Itajaí (ANI). A oficina de construção naval amadora dá oportunidade a dezenas de pessoas que querem construir suas próprias embarcações a vela, de madeira, a partir de projetos já bem conhecidos.

O coordenador do projeto é o professor Wilson José da Silva, 46 anos, que comemora o sexto ano da oficina. Formado em administração e em tecnologia de construção naval, Wilson é um apaixonado pelo mar, já foi instrutor de remo e vela, e hoje coordenada os projetos desenvolvidos pela ONG.

A reportagem conheceu o galpão na praia Brava, na rua Argemiro Mendonça, 57, onde todas as noites de terças e quintas-feiras os alunos se reúnem para trabalhar em seus barquinhos. Atualmente estão sendo feitos oito veleiros do modelo shellback e um navigator [modelo neozelandês criado pelo projetista John Welsford]. A oficina conta com 10 alunos e três voluntários. “Na primeira aula nós fazemos uma apresentação sobre a dinâmica do curso, eles adquirem o material e começamos a construção. Em torno de nove meses os barcos vão pra água”, conta Wilson, que também pretende levar os veleiros que estão sendo produzidos para a água no lançamento da regata Jacques Vabre, no final de novembro.

O coordenador explica que os alunos investem em média dois mil reais com material e contribuem com uma mensalidade para arcar com os custos de manutenção do projeto. As inscrições para 2014 estão abertas, mas o coordenador alerta que os interessados passam por uma triagem para verificar se realmente têm afinidade, mesmo porque as vagas são limitadas. “É necessário um certo conhecimento e prática com as ferramentas manuais e elétricas que utilizamos para trabalhar com a madeira”, explica Wilson.

Os barcos são construídos com compensado naval revestido de resina epóxi. “O bacana é que, depois que o barco fica pront, ele fica lindo, e é uma verdadeira obra de arte”, considera o coordenador.

Construindo um sonho

O comerciante Evandro César Malburg, 52 anos, e o administrador Rodrigo e Silva Marques, 36, resolveram embarcar juntos na oficina, mas para construir um protótipo de veleiro neozelandês com capacidade para quatro pessoas. Como o projeto deles é mais complexo que o dos demais colegas, eles pretendem concluí-lo só no ano que vem. “Creio que em março de 2014 esteja na água”, diz Rodrigo. “Isso daqui é o único desse tipo no Brasil”, garante Evandro.

O técnico em agropecuária Pedro Paulo Fantini, 55 anos, fez parte da turma de 2011, quando construiu o seu Papa-terra, modelo shellback. “Papa-terra é o nome de um peixe pequeno que não se afasta muito da costa e tem em todo o nosso litoral”, explica orgulhoso.

Fantini conta que tinha um barco motorizado, mas quando fez o curso de vela da associação [o curso básico de vela da ANI é aberto a toda a comunidade, com duração de cinco horas e custo de 300 reais], ficou encantado pelo contato com a natureza. “Não tem barulho, só o vento e o mar”, lembra o velejador.

A etapa da Volvo Ocean Race em Itajaí, foi o que motivou o técnico em eletrônica Fabiano Bitencourt, 43 anos, a conhecer o mundo dos veleiros. Depois de fazer o curso de vela oferecido pela ANI, juntamente com o filho Guilherme, 12, Fabiano resolveu encarar a construção de sua própria embarcação. “Acho tudo isso muito fascinante”, resume Fabiano.




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