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Dia da Inconsciência Branca


Por ser o momento em que se lembra a figura histórica de Zumbi dos Palmares (1655-1695), líder he­roico do mais importante quilombo brasileiro, 20 de novembro é a data dedicada à Consciência Negra. É também dia da Inconsciência Bran­ca. Foram as armas que viabiliza­ram aos colonizadores europeus o poder opressor sobre as nações da África negra. Em nome de Deus e de um projeto civilizatório, in­vadiram o continente africano e submeteram o seu povo ao jugo da escravidão.

O povo foi obrigado a aceitar o batismo cristão, e a marca do sa­cramento era gravada nas peles ne­gras a ferro e fogo. O propósito era livrá-los, após esta vida, das cha­mas eternas do Inferno, por culpa de suas crenças animistas e rituais eróticos. Destinava-os, porém, nes­ta terra, ao suplício do trabalho ár­duo, das sevícias, das chibatas, das torturas e da morte atroz.

De tal arrogância se nutria a in­consciência branca que, ao quali­ficar de raça a mera diferença de coloração epidérmica, elevou-a à categoria de pretensa ciência. Bus­cou-se na Bíblia a caricatura de um deus maldito que, após o Dilúvio Universal, teria criado a descen­dência negra da Cam (Cão), um dos filhos de Noé.

No Brasil, o preconceito à ne­gritude deita raízes na mais lon­ga história de escravidão das três Américas: 350 anos! Ainda que, hoje, nossas leis condenem a dis­criminação, sabem os negros que, aqui, eles são duplamente discrimi­nados: por serem negros e pobres. Ao escravo liberto se negou o aces­so à terra, que ele tão bem sabia cultivar.

Impediu-se ainda o acesso à carreira eclesiástica, aos quartéis (exceto como soldado e bucha de canhão na guerra do Brasil contra o Paraguai), às escolas particulares.

Na década de 1950, no colégio Dom Silvério, em Belo Horizonte, ouvi irmão Caetano Maria, proce­dente de Angola, apregoar na sala de aula que negros eram inaptos à matemática e às ciências abstratas, vocacionados à música e aos traba­lhos manuais...

A inconsciência branca viceja, ainda hoje, na promoção turística da mulata carnavalesca, ela sim li­berada, por leis e censores, a exibir em público seu corpo nu.

É a inconsciência branca que protesta contra o direito de cotas para negros nas universidades; en­cara com suspeito o fato de o negro estar em espaços predominante­mente ocupados por brancos; in­duz a polícia a expor garras ferozes ao revistar jovens negros.

O profetismo heroico de Zum­bi, Mandela, Luther King e tantos outros ainda não logrou desconta­minar nossa cultura do ranço do preconceito e da discriminação. Quantos executivos negros ocu­pam cargos de direção em nossas empresas? Apenas 5,3%. Quantos garçons e chefs de cozinha? Quan­tos apresentadores de TV e anima­dores de auditório?

A violência com que médicos brasileiros, todos brancos, subme­teram, em Fortaleza, “ao corredor polonês da xenofobia” – na expres­são do ministro Padilha, da Saúde - o médico cubano Juan Delgado, um negro, a quem a presidenta Dil­ma pediu desculpas em nome do povo brasileiro, bem comprova a inconsciência branca.

Esta inconsciência também ado­ta o preconceito às avessas. Feste­jou-se a eleição de Obama, o pri­meiro negro na Casa Branca, como uma pá de piche (cal é branco...) na política terrorista do presidente Bush. Esqueceu-se que Obama, an­tes de ser negro, é estadunidense, convencido do direito (divino?) de supremacia dos EUA sobre as de­mais nações do mundo.

Por que haveria ele de pedir des­culpas por espionar a presidenta Dilma se não está disposto a ab­dicar dessa violação? Obama é tão guerreiro e cínico quanto Bush.

Com frequência vemos o precon­ceito às avessas expressar-se na negação da negritude, como se ela fosse um estigma, através de eu­femismos como afrodescendente. Sou branco, embora traga nas veias sangue indígena e negro, e nunca me chamaram de iberodescendente ou eurodescendente.

A data de 20 de novembro de­veria ser comemorada nas escolas com lições históricas sobre o pre­conceito e discriminação e depoi­mentos de negros. De nossa popu­lação carcerária, hoje beirando 500 mil detentos, 74% são negros. Nos EUA, de cada 11 presos, apenas 1 é branco.

Só a consciência negra é capaz de combater a inconsciência bran­ca e despertá-la, tornando hedion­dos todos os crimes de preconceito e discriminação.

Frei Betto é escritor, autor de “Aquário Negro” (Agir), entre outros livros


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