Matérias | Variedades


CONSCIÊNCIA NEGRA

Mostra Haiti de Cultura expõe falta de política de inclusão social

Dia criado para discutir a reparação histórica aos afrodescendentes não é nem feriado em Santa Catarina

Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]

A exposição “Envizib” (Invisível) revela a importância do coletivo na sociedade haitiana (foto: lenon cesar)


Eram para ser dias de celebração de uma comunidade numerosa em Itajaí, mas ainda invisibilizada por habitar as franjas da cidade e trabalhar em atividades longe dos nossos olhos, nos andaimes dos prédios e limpeza de eventos. Na 1ª Mostra Haiti de Cultura, a festa era deles, mas foi abalada por um e-mail anônimo a poucas horas do início prometendo fazer uma chacina, em retaliação à prisão de oito integrantes de uma célula neonazista um dia antes, pela Polícia Federal. Nada que abalasse a determinação da produtora Andréa Müller, que teve o projeto selecionado na lei de incentivo por unir arte, cultura e inclusão social.

“Eu não tenho medo, nem os haitianos. Eles foram vítimas de racismo inúmeras vezes, está na hora da sociedade mostrar que é contra este pensamento segregacionista, afinal os imigrantes prestam um serviço que poucos reconhecem”, desabafou Andreia na abertura do evento, após a palestra do historiador José Bento Rosa da Silva. A pauta era o que podemos aprender com o Haiti, primeiro país a abolir a escravidão, em 1804, através de uma revolução popular, liderada por Toussant L’Overture, influenciado pela Revolução Francesa, anos antes.

A alegria, porém, durou pouco. Para que o exemplo haitiano não fosse seguido por outras colônias, o país teve que indenizar o país colonizador, a França, uma dívida impagável que tornou a administração local ingovernável. Por causa da dívida, o país teve sanções econômicas que impediu o seu desenvolvimento e provocou o surgimento de gangues rivais e governos ditatoriais. “O Haiti não é um país pobre, mas empobrecido. O vodu, religião ligada a elementos da natureza, como o candomblé, não é satânica, mas uma invenção do ocidente. Não interessava às grandes potências a autonomia política do Haiti, que foi ocupado pelos EUA de 1915 a 1935, que só reconheceu sua independência nos anos 60”, revela Bento.



E as sabotagens à emancipação negra continuam, só adquirem novas faces. A ameaça anônima neonazista não impediu que o evento acontecesse, mas espalhou medo na comunidade, principalmente as escolas que levariam as crianças para conhecer a exposição “Envizib”, que reúne 12 obras retratando costumes, religiosidade e arte popular do Haiti. Os quadros estão à venda por preços que vão de R$ 300 a R$ 500. “Eu estava com medo, mas não podemos nos acovardar. A ameaça feita aos haitianos nos afeta também. É na adversidade que viramos resistência. A chibata só mudou de forma”, destacou o historiador.

José Bento abriu os trabalhos mostrando o que podemos aprender com os imigrantes

José Bento abriu os trabalhos mostrando o que podemos aprender com os imigrantes

 


 

Rede de solidariedade é fundamental para a comunidade

Evento encerrou com show da banda Sons do Haiti e a visita de imigrantes de Pomerode

Evento encerrou com show da banda Sons do Haiti e a visita de imigrantes de Pomerode

 

Na segunda noite da mostra, a assistente social Dalila Pedrini trouxe a experiência da rede de solidariedade de Itapema. Ela conta que ao ver os imigrantes na orla e falando um idioma que parecia francês, foi atrás de descobrir os desafios e dilemas daquela comunidade. Ela conta que passou de casa em casa em 2014 apresentando um folheto escrito em creole, com a ajuda de um haitiano que fala português, para reunir os imigrantes que viviam no bairro de Morretes. E assim foi criada a Ahia, nos moldes da associação pioneira de Balneário Camboriú.


Os problemas relatados pela comunidade eram a dificuldade com o idioma, o desconhecimento de seus direitos e deveres no Brasil, a dificuldade de conseguir emprego em sua área de conhecimento, regularização da situação no país e o alto custo de vida do litoral. “Muitos são altamente qualificados, são professores, advogados, médicos, enfermeiros, que só conseguem serviço na construção civil. Já tentamos de tudo, mas não conseguimos que os saberes deles fossem reconhecidos”, lamenta Dalila.

Ela disse que mesmo sendo estrangeiros, os haitianos estão contemplados pela Constituição de 1988, no artigo 5, que diz respeito à garantia de vida, igualdade e segurança, além de educação, saúde e assistência social gratuita. E acrescenta que a política de acolhimento aos imigrantes foi duramente atingida pela PEC 95, de 2016, que congelou os recursos por 20 anos e cortou recursos nas áreas de educação, saúde e assistência social.

Em seguida, Jean Florisma e Venord Jean deram seu depoimento sobre o que os levou a migrar para o Brasil. Jean é formado em gestão administrativa e dava aulas no Haiti, e trabalha hoje como jardineiro na faculdade Estácio de Sá. Eles afirmam que é impossível morar em seu país devido à instabilidade política. “No Haiti não escolhemos o presidente. Se alguém chega ao poder e quer fazer algo pelo povo acaba morto. Quem estudou não encontra emprego”. Cinco presidentes do Haiti foram assassinados, o último em 2021.

No dia seguinte, o tema do debate foi o desafio de aprender a língua portuguesa sem abandonar a língua materna. Aliás, todo o material informativo da mostra era bilíngue. Participaram da mesa João Edson Fagundes, fundador da associação de haitianos de Navegantes, a assistente social Janete Vargas e Jemps Lucien, que estudava Direito no Haiti e hoje trabalha como soldador e bombeiro voluntário.


 

Saldo positivo

O último dia do evento foi dedicado aos ritmos do Haiti, numa oficina ministrada por Samuel Auboug, pianista e tecladista, o primeiro haitiano formado no Conservatório de Música Popular de Itajaí e professor do projeto Arte nos Bairros. Após a oficina, a banda Sons do Haiti subiu ao palco. Imigrantes que moram em outros municípios vieram prestigiar o evento, como a comitiva de Pomerode.

“Embora a gente tenha tido problemas de toda ordem, estou muito feliz porque a comunidade haitiana foi prestigiar e se divertiu, sorriu, dançou, cantou e bebeu com a gente. É muito precioso fazer bem ao outro através do nosso trabalho”, declarou a produtora Andréa Müller. Ela também fez questão de agradecer aos moradores de Itajaí que foram prestigiar a festa. “Vocês não fazem ideia da felicidade que eu senti ao ver a população de Itajaí nos ajudando a fazer este acolhimento. Vi pessoas dançando juntas, sorrindo e isso só reforça a certeza da mostra continuar linda e forte para a gente construir uma sociedade de paz”, avalia.

 

“Petit Haiti” traça um panorama histórico da saga dos imigrantes


Catástrofes naturais e instabilidade política provocam êxodo

Catástrofes naturais e instabilidade política provocam êxodo

 

Assistentes sociais e religiosos foram os primeiros a perceberam o fenômeno social que estava em curso no litoral de Santa Catarina, quando ouviram um idioma diferente sendo falado entre trabalhadores da limpeza pública e construção civil. Um deles foi o pastor da Igreja Luterana, Günter Bayerl Padilha, que veio morar em Itapema em 2012, após se graduar em Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima. Junto com Dalila Pedrini, eles criaram uma rede de solidariedade que dá suporte à comunidade haitiana, e essa história de acolhimento e responsabilidade social se transformou no livro “Petit Haiti”, lançado em 2022.

Para além de uma narrativa pessoal, a obra é um estudo acadêmico que narra a saga dos imigrantes, desde a colonização da ilha caribenha por espanhóis e franceses no século 15, passando pela independência em 1804, as sucessivas catástrofes ambientais, sociais e políticas e a cultura da emigração como estratégia de sobrevivência. Para a sociedade haitiana, migrar é se emancipar, um sonho acalentado pelos jovens para terem alguma chance de futuro e ajudar os pais. Um terço dos haitianos mora fora do país (5 milhões), cerca de 100 mil no Brasil. O trabalho é o resultado da dissertação de mestrado em Antropologia na UFSC, em 2020.

 

 

Dalila Pedrini trouxe a experiência da rede de solidariedade formada em Itapema

Dalila Pedrini trouxe a experiência da rede de solidariedade formada em Itapema

 

 

Voluntários fazem a diferença na vida de imigrantes

O livro centra o foco na diáspora haitiana até o litoral catarinense. A primeira leva chegou após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou 316 mil pessoas. Eles viajam de avião ou barco até o Panamá, depois de ônibus pelo Equador e Peru até chegar à divisa com o Brasil no Acre. Muitos deles pagam a um ‘coiote’ para fazer este translado. Mesmo quem consegue visto humanitário tem que desembolsar três mil dólares para chegar ao Brasil.

No Acre, os imigrantes foram recrutados por empresários da construção civil, madeireiros e do agronegócio, que pagaram o translado e, no início, deram alojamento, mas a maioria de forma temporária e sem carteira assinada. Santa Catarina foi o estado que mais empregou haitianos em 2017, cerca de 4 mil, mas também foi o estado que mais demitiu – 3856, causando uma instabilidade na vida dos imigrantes, que se veem num país que não entendem o idioma nem as leis, sem recursos para pagar aluguel e comer. E o que é pior – caindo em vários golpes.

Diante desta realidade, voluntários fizeram a diferença, se aproximando dos imigrantes, conhecendo suas demandas, suas potencialidades e formas de integrá-los sem abrir mão de sua cultura. A primeira inciativa foi a criação de associações para ensinar português. Depois foram dadas palestras sobre leis trabalhistas, lei Maria da Penha, Conselho Tutelar, ECA e cursos profissionalizantes como panificação para ampliar as chances de trabalho para além do trabalho sazonal, insuficiente para garantir o sustento por oito longos meses.

Günter traz depoimentos de haitianos, o papel de entidades religiosas, como a Pastoral do Migrante, e a dificuldade em fazer pontes com o poder público para formular uma política de acolhimento destes imigrantes, que foram trazidos por uma demanda de mão de obra, mas acabaram abandonados. O Centro de Referência e Assistência ao Imigrante, criado em 2018 pelo governo do estado, foi fechado em 2019 com a justificativa de cortar gastos, prova do descaso com as demandas sociais. A taxa de desemprego na comunidade chega a 60%.

 




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