Itajaí
Meio milênio após Gonneville
As histórias sobre o primeiro intercâmbio franco-brasileiro e como ele é reinventado pelos novos viajantes
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Para viajar no tempo, basta entrar no cubículo de vinte metros quadrados cravado em uma das esquinas mais movimentadas de Itajaí, em Santa Catarina. Ao folhear revistas, livros, enciclopédias e jornais expostos nas prateleiras, é possível conhecer personagens que viveram no outro lado do oceano Atlântico. Ou, então, é só puxar conversa com o sujeito atrás do balcão.
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Na fachada, um letreiro com as cores da bandeira da cidade dá pistas de quando esta história teve início. Içá-mirim, com acento, é o nome da revistaria na avenida Joca Brandão. Para resumir, o dono ...
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Na fachada, um letreiro com as cores da bandeira da cidade dá pistas de quando esta história teve início. Içá-mirim, com acento, é o nome da revistaria na avenida Joca Brandão. Para resumir, o dono explica o que ele representa: trata-se de um índio da tribo dos carijós o primeiro brasileiro alfabetizado levado para a França pelo navegador Binot Paulmier de Gonneville, em 1504.
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A viagem transatlântica, recontada nos estudos da professora Leyla Perrone-Moisés, abriu alas para uma relação entre os dois países que dura mais de quinhentos anos. Eu faço questão de dizer que ele foi um ca-ta-ri-nen-se, fala o proprietário da banca local mais antiga, ao mesmo tempo em que vibra com o punho fechado.
Seu Joaquim tem 89 anos e há 28 mantém o negócio no ramo da leitura. À primeira vista, não se imagina tamanha relação entre o índio carijó e este senhor. Os cabelos brancos e a pele clara, pelo contrário, sugerem maior ligação com o lugar onde Iça-mirim viveu, do que onde nasceu. A relação deles, no entanto, se confirma quando Joaquim Antônio Pereira da Silva, vestido tradicionalmente de camisa social e suspensório, puxa o livro São Francisco do Sul Muito além da viagem de Gonneville.
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Abre numa página gasta por contínuas consultas e se reconhece no meio da multidão, numa foto antiga da cidade. Ainda que meio milênio separe os personagens, eles são conterrâneos e viajaram para o outro continente. Joaquim, que foi chefe de máquinas em navios da Marinha do Brasil durante 28 anos, tem carinho especial pela França. Tanto, que já refez o trajeto do índio mais de uma vez, além de visitar outros 151 países.
Iça-mirim, ou Essomericq, como ficou conhecido no país europeu, teve a história de sua viagem recontada por inúmeros historiadores franceses e brasileiros, e por pessoas que se sentem filhos dessa relação. São Joaquins que passam adiante aquele que pode ter sido o primeiro contato amigável entre indígenas e europeus, conforme registrado no livro Vinte Luas, de Leyla Perrone-Moisés.
Há, no entanto, quem duvide que a viagem de Gonneville ao litoral catarinense tenha realmente existido. O primeiro a contestar foi o francês Jacques Lévêque de Pontharouart, que seguiu as pegadas do capitão e publicou Paulmier de Gonneville son voyage imaginaire. Para o historiador, tudo não passou de uma lenda.
Os argumentos apontam para a falta de registros sobre Iça-mirim. Afinal, como era a vida do índio na França, longe de casa e em meio a outra cultura? Este silêncio, para o autor, deixa mais dúvidas do que certezas sobre a passagem do carijó pelo continente europeu.
Filho de historiador e nascido em São Francisco do Sul, Carlos da Costa Pereira Filho não só concorda com Pontharouart, mas condena a aceitação da suposta lenda como marco histórico da terra natal. Compete ao poder público zelar, no tocante à cultura, pela autenticidade histórica das origens [...]. Mas não se lance a aventuras ridículas para atrair turistas, uma boa parte aposentados que se sacrificam em pagar custosas caravanas..., disse em um texto publicado no dia 16 de abril de 2002 no jornal joinvilense A Notícia.
A lorota histórica, como assim chamou, rendeu-lhe o livro A Viagem da Esperança. Pereira Filho reconta a expedição e, embora admita ter se baseado nas histórias contadas pelas pessoas de sua terra, não usa São Francisco do Sul como cenário. Para o francisquense, o local descrito por Gonneville não é a paisagem que tem da janela.
Lenda, verdade ou uma combinação de ambas? Para pessoas como seu Joaquim, não há dúvidas de que realmente aconteceu. O menino [Iça-mirim] que estava no lado dele [Gonneville], com a flechazinha, matava [a caça] antes do Binot atirar. Aquilo chamou a atenção do Binot e os dois tornaram-se amigos, faz um relato, mas não revela a fonte.
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O francês Truchot Jeremy, outro historiador que coloca em xeque a história, dá sinais de concordar com Joaquim neste ponto. Na edição de junho de 2010 da revista História Catarina, ele concluiu: Se a história se torna fonte de polêmicas, se as hipóteses se transformam em dogmas, talvez então ela seja uma mentira que ninguém jamais deveria contestar, para continuar a sonhar.
Os atuais viajantes
O nome e o sotaque logo revelam a origem. Francês radicado em Santa Catarina, deixa escapulir um passion ao falar sobre o que traz os franceses ao Brasil. Para o diretor da Associação Cultural Franco-Brasileira de Florianópolis, Fernand Defournier, a raiz latina dos dois idiomas facilita o convívio entre as nacionalidades: Muitas palavras francesas estão utilizadas no quotidiano dos brasileiros e os dois países se respeitam muito.
A oportunidade de ter estudado a língua portuguesa foi um dos motivos que trouxe mais uma francesa para o estado catarinense. Moradora de Balneário Camboriú há nove meses, pode se passar por brasileira, tamanha a desenvoltura ao falar o idioma local. Só fica claro que é estrangeira quando se apresenta. Marie Brazo, de 21 anos, cursa Comércio Exterior e analisa o país a partir da área que estuda: A gente vê que o Brasil está se desenvolvendo no plano econômico e político. Pode ser uma grande potência.
No próximo mês, ela terminará o intercâmbio, mas pretende voltar depois de formada. Na França, as pessoas estão sempre correndo, aqui elas são mais relaxadas, bem melhor, avalia a estudante. Além da expectativa que tem sobre o Brasil, quer desfrutar da qualidade de vida que encontrou no estado.
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Para o outro lado do oceano Atlântico foi a também intercambista Bárbara Angélica Bombana, de 20 anos. Ela é uma dos quatro mil alunos brasileiros que visitam o país europeu no momento, de acordo com a Embaixada Francesa no Brasil. Sem ter ascendência francesa ou familiares morando lá, conta que o interesse pela França nasceu de um antigo desejo da mãe. Ela tinha o sonho de vir para cá desde muito pequena e passou para mim a vontade, explica a estudante de Lages.
Há 10 meses, Bárbara está na cidade de Nantes, onde dá continuidade aos estudos. Neste período, aproveita para conhecer os principais pontos turísticos do país e compartilha as fotos dos passeios com os amigos pela internet. Aqui, as pessoas são educadas, mas não te abraçam de primeira, como acontece no Brasil, descreve a fase de adaptação que, segundo ela, foi rápida.
O intercâmbio da estudante termina em dois meses, mas ela já tem planos de fazer uma nova viagem: Voltaria para cá sem pensar duas vezes. Além dos amigos estrangeiros, há outro motivo que a encantou na França. Quando embarcar para o Brasil, trará na mala presentes, fotografias e a saudade. A ligação da brasileira com o Velho Mundo é de amor, não só pelo país, mas também pelo francês com quem namora.
Futuras travessias
Além do vento que estufa a vela do barco, é também o sonho de velejar para além da baía Afonso Wippel, no Saco da Fazenda, em Itajaí, que motiva o velejador mirim Alexandre de Souza Filho. A ligação do menino de 13 anos com o mar vem da família de pescadores. Pensar em velejar, no entanto, nunca tinha passado pela cabeça do garoto até pouco tempo atrás.
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Há um ano, Alexandre faz parte da equipe de vela da Associação Náutica de Itajaí (ANI). Foi durante a primeira regata internacional sediada na cidade em 2012, que viu o barco como uma oportunidade de lazer e, ao mesmo tempo, uma paixão. A sensação foi ótima, mas também deu medo de fazer alguma coisa errada, de virar o barco. Agora, o medo passou, conta o menino que quer a vela como profissão.
Em outubro, a regata Transat Jacques Vabre sairá de Le Havre, na França, e chegará a Itajaí. Enquanto espera pelo evento, Alexandre treina no mesmo lugar onde velejadores de todo o mundo ficarão durante a competição. É na baía contornada pela avenida Beira-Rio que ele veleja todos os dias. Deve ser emocionante, mas também um pouco chato, sem ter muita gente pra conversar, brinca ao se imaginar participando de uma regata.
Alexandre chega cedo, pelo menos meia hora antes do treino começar. Com os pés descalços e o colete salva-vidas vestido, faz o aquecimento em terra: corrida e alongamento. Aos poucos, outras crianças repetem o ritual ao lado dele. Na sequência, começa a montagem das velas. Eles próprios preparam os barcos, supervisionados pelo olhar do treinador.
Passam a tarde toda velejando para lá e para cá. O treino só é interrompido mais cedo nos dias em que a chuva aparece.Aqui, tu interage, compete, ganha experiência. Quando eu for adulto, vou colocar tudo o que aprendo na prática, sonha Alexandre, sentado no píer de madeira da associação, enquanto observa o movimento da água.