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Os abraços foram longos e apertados. Como se não quisessem mais se perder novamente. Até ontem à tarde não se conheciam, mas tinham um motivo especial para tanto carinho. Há quase 30 anos, Shir Fridman foi levada para Israel poucos dias depois de nascer na Maternidade do Hospital Marieta Konder Bornhausen, de Itajaí, num esquema que na época a polícia apontou como tráfico de bebês.
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Nesta sexta-feira, Shir pode finalmente estar entre os braços dos irmãos Rosimar Elias Vaz, a Rosi, 47, Robson Elias, 38, e conhecer primos, sobrinhos e até uma tia. Foi graças a um programa da polícia Militar de Santa Catarina, que a polícia israelense pode localizar os parentes. Estou muito empolgada, feliz, conseguiu dizer Shir.
A casa azul de madeira, número 55, é uma das mais simples da rua Inácio Rogério Kuster Nunes, na Praia Brava. Mas ontem, virou o centro da atenção dos vizinhos, que olhavam curiosos. Os carros da imprensa e da polícia Militar tavam estacionados em frente. Numa área externa da casa, mais de 10 pessoas da mesma família esfregavam a todo momento as mãos, riam nervosamente ou denunciavam nas conversas a expectativa do que estava por vir. Tá demorando. O Marcus (major da PM) disse que eles iam tá aqui em 10 minutos, deixou escapar, ansiosa, a enfermeira Leia Elias, tia de Shir.
A garota se espantou quando chegou. Recebida com uma salva de palmas, gritos de viva e pelos abraços carinhosos de Rosimar e Elias, confessou que não esperava uma recepção tão calorosa. Mas nem os gestos contidos da moça que cresceu entre os judeus conseguiram esconder o que sentia. Os olhares que lançava, principalmente aos irmãos, denunciavam a alegria do reencontro.
No meio da conversa, Rosi puxou um quadro. Por alguns segundos, que pra família pareceram intermináveis, a garota fitou a imagem na fotografia. Era de Marlene, a mãe, que morreu há duas décadas, vítima de um câncer, quando tinha 45 anos. Shir nunca conviveu com ela.
Rosi estava nervosa. Mas ela está tremendo, afirmou, apontando a irmã que acabara de conhecer. Robson não quis falar muito. Parece muito com a minha mãe, deixou escapar. Os olhos estavam inundados. Os dois são parecidos, avaliou Rosi, olhando os dois irmãos mais novos.
A mesa da cozinha, caprichosamente preparada para um café da tarde, um cartaz com a frase Seja bem vinda, Shir!!! e balões pendurados no teto foram o jeito singelo da família Elias receber a menina levada embora há tanto tempo.
Shir trouxe para os dois irmãos quadros de cerâmica, escritos em hebraico, a língua nativa dos israelenses. De boa sorte, para pendurar na casa, disse, através da tradutora Giovana Claudino. A moça só fala hebraico e inglês. Estou tentando aprender português, mas está difícil, confessou. De presente, recebeu de Rosi um par de brincos. É bem simplinho, avisou à irmã.
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A moça fez questão de abraçar um por um dos mais de 10 parentes que estavam por lá. Posou pras fotos, trocou algumas palavras através da tradutora e esbanjou olhares para todos os presentes, em especial para os manos.
Ontem mesmo, Shir voltou para Florianópolis, onde está hospedada num hotel em Canasvieiras. Mas prometeu voltar a Itajaí. Vai ficar alguns dias em Santa Catarina. Depois retorna para Israel, onde mora. Garantiu, pra felicidade da família Elias, que vai voltar outras vezes para ver os parentes no Brasil.
Bebês chegaram a ser vendidos por 50 mil dólares a estrangeiros
Shir nasceu em 5 de agosto de 1985. Com sete dias foi levada para Israel, naquele esquema do advogado Carlos Cesário Pereira, lembra o major Roberto Claudino, 43, responsável pelo encontro da família. O esquema que o oficial da polícia Militar se refere era um suposto tráfico de crianças para o exterior, principalmente para Israel, na década de 80.
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A bebê ficou apenas dois dias na maternidade do hospital Marieta Konder Bornhausen. Depois foi retirada da mãe. Permaneceu outros cincos dias numa casa, junto com outras crianças, e logo embarcou para Israel, com toda a documentação pessoal e de adoção. Eles viram a fragilidade da mãe e levaram a criança. Em sete dias já estava fora do país, comenta o major.
O advogado Carlos Cesário Pereira, hoje com 68 anos, mora em Balneário Camboriú. Ele chegou a ser preso na época, mas acabou não sendo condenado. Pra polícia Federal, o advogado comandava uma operação de adoções ilegais para estrangeiros. Mas as duas famílias não sabiam disso. Eu investiguei e eles não tiveram dolo (intenção do crime), faz questão de dizer o major.
Pelo que constava no inquérito policial, mulheres pobres que chegavam na maternidade eram abordadas por assistentes sociais e enfermeiras, que passavam a aliciá-las. Algumas recebiam uns poucos trocados e a promessa de que poderiam ver seus filhos quando quisessem. Isso, claro, nunca aconteceu.
O lucro do suposto tráfico, segundo a PF apontou, vinha das famílias estrangeiras, principalmente israelenses, que chegavam a pagar de cinco mil a 10 mil dólares por criança, sem imaginar que estavam fazendo alguma operação ilegal. A alegação era de que o dinheiro serviria para pagar a documentação do processo de adoção. Na verdade, os custos não chegavam a 500 dólares.
Na época, além de Cesário Pereira, também foi presa Arlete Hilu, que até bem pouco tempo vivia em Balneário Piçarras. A mulher foi a única condenada. Cumpriu metade dos quatro anos e oito meses de prisão. Arlerte, segundo a polícia, teria vendido um bebê por 50 mil dólares.
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Programa da PM já encontrou quase 200 desaparecidos
O SOS Desaparecidos é um programa criado pela polícia Militar de Santa Catarina há dois anos e meio. Foi o próprio major Marcus Claudino o idealizador. Nesse tempo, 187 pessoas já foram localizadas, informa, orgulhoso, o oficial.
Shir está entre os 22 estrangeiros que a PM de SC conseguiu encontrar a família brasileira. A maioria deles, 18, são de Israel, comenta o major. E não é por menos. As autoridades brasileiras estimam que entre 1,5 mil e três mil crianças foram traficadas ou adotadas de forma fraudulenta por famílias israelenses na década de 80. Grande parte delas no sul do Brasil.
Foi Shir quem procurou a família
Rosi sabia da existência da irmã caçula. Robson também. Mas nem tinham ideia de onde ela estava. Chegaram até a esquecer da caçula. Eu era muito jovem quando ela nasceu. Tinha só 17 anos. Nem me lembrava mais da existência dela, confessa a irmã.
Shir tinha a faca e o queijo na mão pra buscar a família biológica. Ela tem todos os documentos de adoção do Brasil e isso ajudou a encontrar a família, diz o major Marcus Claudino, que coordena o programa SOS Desaparecidos, da PM catarinense. Foi ele quem coordenou as investigações e chegou até a família Elias. O major ajudou muito. Fez todos os contatos, reconhece a moça israelense.
Adotada por uma família de classe média, a garota vive em Herzliya, encostadinha na famosa Telavive, a segunda maior cidade de Israel.
Ao DIARINHO, Shir disse que sempre soube que era adotada. Há uns quatro anos, começou a procurar a família. Fui na internet e tiveram algumas pessoas que quiseram cobrar pra encontrar minha família, mas eu não quis pagar, contou, através da tradutora.
O drama começou a chegar ao fim quando descobriu o programa SOS Desaparecidos. O próprio major Marcus assumiu o caso. E tudo foi muito rápido. A gente demorou praticamente uns 20 dias pra fazer o levantamento, fazer todas as confirmações das informações, fazer o contato com a família, conta. Os documento de adoção que Shir enviou para o oficial da PM foram fundamentais pra que o major encontrasse o rastro.
Quase enfartei
Era 2 de fevereiro quando Rosi, a irmã mais velha, recebeu uma ligação que a surpreendeu. Era o major Marcus informando que havia encontrado sua irmã caçula, adotada há mais de 29 anos. Quase enfartei. Jamais esperava uma coisa dessas, diz Rosi, que logo botou a família em polvorosa com a boa nova. Ficaram impactados com a notícia, mas ficaram felizes depois, lembra o coordenador do SOS Desaparecidos.
Os primeiros contatos entre os irmãos e o restante da família foram através do Facebook e por Whatsapp. Eu comecei a conversar com ela dia 2 de março, pelo Whatsapp, e através dessas conversas ela perguntou se a gente gostaria de conhecer ela, recorda-se Vanessa da Silva, 24, nora de Rosi. Pronto, tava dada a largada pro encontro acontecer de fato. Ah! O tradutor do Google foi essencial pra eles a se comunicarem.
Sem condições de criar os filhos
Logo de pequena, Rosi foi morar com a avó em Biguaçu. A mãe, Marlene, não tinha condições de criá-la. Depois nasceu Robson. Nove anos mais tarde veio a bebê que hoje se chama Shir. A minha mãe já tinha o Robson pequeno e não tinha condições de cuidar de mais um. Aí deu pra adoção, conta a mais velha das filhas de Marlene, que não sabia que a caçulinha tinha ido pra Israel num esquema que já foi apontado pela polícia Federal como tráfico de bebês.
Marlene não tocava no assunto. Mesmo quando sofreu com o câncer e foi morar com a irmã Leia, em Floripa, não trouxe o passado à tona. A família desconhece quem é o pai da criança.
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