Itajaí
Primeira turma do Colégio Agrícola de Camboriú
Entre abraços, sorrisos e lágrimas, 16 senhores relembraram os tempos de internato vividos meio século atrás
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
Sandro Silva
sandro@diarinho.com.br
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Os sorrisos são largos. Mas lágrimas também aparecem vez ou outra. Os abraços, com aquele aperto de saudade. Mesmo não se vendo há 50 anos, entre eles não há formalidades. Brincadeiras e lembranças do que viveram juntos na década de 60 do século passado vêm à tona, num encontro pra lá de curioso: os 16 formandos da primeira turma de mestres agrícolas do antigo Colégio Agrícola de Camboriú.
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Aliás, formandos não, formados. Foi em 1965 que aqueles garotos receberam seus diplomas, deixaram o internato e foram ganhar o mundo. O que dá ainda mais importância ao evento, que aconteceu no sábado, é que apesar dessa distância de meio século, estão todos vivos, tanto alunos como professores.
Juntos, esses senhores somam em idade mais de mil anos. Por isso, o sábado foi curto para tanta conversa, que juntou ainda ex-funcionários do colégio, ex-professores e familiares daquela rapaziada que pode ser chamada de desbravadora: foram eles que abriram, na foice e na enxada, boa parte dos mais de dois milhões de metros quadrados das áreas de plantação e pasto do hoje campus do instituto Federal Catarinense. Fomos os pioneiros, observa Januário Manoel da Silva, 67, que veio de Curitiba só pra participar do encontro.
Isso mesmo, naquele tempo, além de se debruçar na teoria, aprendiam na prática como cuidar da terra e dos animais. Era muita roçada, fazer vala, lembra Gerson Calixto, 70 anos, que mal conseguia conversar com o DIARINHO, de tanto abraços que recebia dos amigos a quem não via há tanto tempo.
A ideia que nasceu de uma foto
O desejo de reunir a turma toda partiu de Jurandir Largura, 67, extensionista aposentado da Epagri. Há pouco mais de um ano, revisitava seus álbuns de fotografia quando se deparou com uma foto da turma toda, na sala de aula. Logo se ligou que dali a um ano faria meio século da formatura da primeira turma de mestres agrícolas do colégio Agrícola.
Pronto. Nasceu a ideia. Sou um saudosista, admite Jurandir, que não ficou só na intenção. Assim como aprendeu no colégio Agrícola, transformou teoria em prática. Partiu pra pesquisas na internet, no Facebook e listas telefônicas. Encontrei todos. Menos o Sapo. O Sapo foi o Januário quem encontrou, comenta.
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Sapo é o apelido que o itajaiense Luiz Carlos Ramos, 64, leva até hoje. Januário Silva, que hoje mora em Curitiba, o localizou através de um irmão também de Itajaí. A família de Sapo mora na antiga rua Amônia, hoje chamada de Luiz Bonifácio Pinto, no bairro São João, e ele agora reside no Gravatá, em Navegantes.
No sábado, Luiz Carlos Ramos (Sapo), Januário Manuel da Silva, Gerson Calixto, Ailton Reis (Catuto), Tomelin Krüeger, Roberto Lippiman, Francisco Pereira da Silva, Luiz Carlos Pereira Sobrinho, Carlos Roberto, Salésio Deschamps, Arnoldo Stark, Nelson Nunes, Pedro Sílvio, José Emiliano Rebello Neto e Cláudio Raitz Bücheller foram em Camboriú, atendendo ao chamado do amigo Jurandir Largura, a quem não viam há 50 anos. Foi muito gratificante vendo eles chegando aqui de novo, se abraçando, com lágrimas nos olhos, diz o grandão do Jurandir, se segurando pra também não desabar no choro.
Uma emoção que contagiou até quem nasceu depois que a turma se formou. Poxa, temos aqui o primeiro vice-diretor, a primeira servidora da escola e a primeira turma de mestres agrícolas que praticamente desbravou todo esse campus, Rogério Kerber, 48, atual diretor do instituto Federal Catarinense. E eles estão todos aqui, estão bem e têm essa consciência de grupo, completa, espantado com a união daquela velha guarda.
Único jeito dos filhos de trabalhadores terem um ensino de qualidade
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Hoje a instituição se chama Instituto Federal Catarinense (IFC). Tem cursos variados para formar trabalhadores qualificados para o mercado de trabalho. Mas já foi voltada exclusivamente para a área rural e exportou técnicos e mestres agrícolas para o Brasil inteiro.
Para entrar no colégio Agrícola, era feito um teste escrito de conhecimento e outro vocacional. Por ser um ensino gratuito, era o único jeito das famílias de agricultores ou de trabalhadores das cidades da região de garantir um escola de qualidade para os filhos.
Funcionava no sistema de internato. A gente só voltava pra casa nos finais de semana, lembra Januário Manoel da Silva. Isso explica a união do grupo que resistiu meio século de distância.
Seu João José Pereira Filho, o Danga, 79, lembra bem de como a turma era unida. Ele era o inspetor do colégio Agrícola naquela época. Uma espécie de mestre de disciplina. Eles eram muito honestos. Jamais um dedava alguém. Todo mundo pagava castigo junto, mas não diziam quem aprontava, lembra, rindo das peraltices da turma.
Pular janelas para fugir do internato, fumar, descer de um andar para outro por um cano de metal, correr gritando pelas escadas e corredores, pegar galinhas da granja para as festas proibidas. Esses são os pecados daqueles 16 meninos que, na solidariedade, segundo seu Danga, jamais traíam um companheiro. Eu não fumava, mas tava junto com eles e aí pagava junto o castigo, completa Gerson Calixto.
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A vida tratou de afastá-los e espalhá-los pelo Brasil. Alguns continuaram na área de assessoramento agrícola. Teve quem virou médico, fazendeiro, trabalhador metalúrgico, comerciante, professor.
No sábado, todas essas histórias de vida foram contatadas, revividas, sob marejados olhares ternos e ouvidos sempre atenciosos.
Ex-professores e ex-funcionários também estavam por lá
O encontro de sábado não foi só de abraços. A direção do campus do instituto Federal Catarinense tratou a reunião dos formandos da primeira turma de mestres agrícolas como evento oficial. Teve tour de van pela imensidão da instituição, almoço de confraternização e solenidade no auditório.
O curso era o chamado ginasial. Algo como a formação final do ensino fundamental. Mesmo assim era técnico. Formava jovens especialistas para atuar em fazendas e empresas agrícolas. Também os qualificava para o curso de técnico agrícola, que viria logo em seguida e tinha status de ensino médio.
Eram tempos difíceis aqueles, lembra dona Zilma Pereira, 85 anos, a primeira funcionária do colégio Agrícola. Eu era escriturária, mas na prática também era faxineira, cozinheira. Quando não tinha verba, a gente fazia de tudo, recorda-se.
Danga, o inspetor, confirma as dificuldades dos servidores pra manter a escola, que penava por falta de repasse de verba do governo federal. Era época de dificuldade. A gente recebia por ano, lembra.
Mesmo assim, ninguém largou a meninada na mão e todo mundo assumia atividades muito além do que suas funções originais exigiam. Eles me chamavam de mensageira do amor, porque eu ia lá na cidade buscar as cartinhas pra eles, diz dona Zilma, toda mimosa.
Cartinhas que traziam não só juras de amor das jovens namoradas, como também o parco dinheiro que as famílias, geralmente de baixa condição econômica, mandavam para os internos. Muitas vezes, os garotos passavam semanas sem poder ir pra casa.
Havia também uma relação de carinho entre quem ensinava e quem aprendia. O itajaiense Ermenegildo Vargas, 71, hoje morador de Porto Belo, dava aulas de francês e inglês pra turma. Era um jovem na época. A gente ia dançar juntos, jogar bola. Mas professor era professor, nunca tive problemas em sala de aula com eles, faz questão de dizer.
Abraçado ao ex-professor, Januário Silva rasga elogios ao antigo mestre. Esse cara aqui foi o primeiro a usar a tecnologia pra ensinar inglês. Botava um disco na radiola e dava aulas assim. Ninguém fazia isso naquela época, solta. Por uma dessas coincidências da vida, anos depois a irmã de Januário se casou com um irmão do professor.
A turma de 65 do colégio Agrícola tem outro motivo pra lembrar de Ermenegildo. Ailton Reis, o Catuto, 67, chega ao encontro trazendo orgulhosamente seu diploma emoldurado num quadro. Lá está, no documento, a assinatura do ex-professor de inglês e francês.
É que Ermenegildo, assim como os outros professores e funcionários da época, também fazia um pouco de tudo pra manter a escola em funcionamento. Quando não estava em sala de aula, atuava como secretário do colégio e por isso também assinou todos os 16 diplomas dos formados na primeira turma de mestres agrícolas.
De cobra voando a uma vida salva. As histórias de uma turma
O campus do atual instituto Federal Catarinense mantém os mais de dois milhões de metros quadrados do antigo Colégio Agrícola. É tão grande, que suas terras atingem várias regiões de Camboriú: centro, Rio do Meio e o distrito do Monte Alegre.
Foi toda essa área, do tamanho de uma fazenda e que pega vários bairros de Camboriú, que era o campo de estudo e trabalho daqueles meninos que não tinham muito mais do que 14 ou 15 anos quando chegaram por lá e que aprendiam, com calos na mão, os fundamentos de como cuidar da terra e de animais.
Por isso, o que não faltam são histórias daqueles bons, mas difíceis tempos de reclusão escolar. E são tantas, que no encontro de sábado teve até um momento chamado de estórias e travessuras de internato.
Algumas carregadas de emoção. Se eu tô vivo hoje aqui, devo ao Cláudio, que salvou a minha vida, afirma Januário da Silva. Numa competição de quem atravessava mais vezes o rio Camboriú, ele e o colega foram os finalistas. Os dois costumavam a se enfrentar nas atividades esportivas. De repente, Januário sofreu uma câimbra, afundou e ficou preso a raízes das margens do rio. Só senti ele me puxando pelo cangote e me trazendo pra cima. Acho que engoli dois mil litros de água naquele dia, mas ele salvou minha vida e isso eu nunca vou esquecer, conta o ex-aluno, repetindo a história que lembrou aos velhos amigos.
Tinham outras mais engraçadas, mas não menos perigosas. Um dia a gente tava roçando um eito e de repente vi aquela jararacuçu passar voando, conta, numa roda conversa, José Emiliano Rebello Neto, 67, enquanto os amigos riem da lembrança.
Alguém, assustado, jogou a cobra peçonhenta longe e quase acertou os colegas. Tinha muita jararaca nesses matos, comentou um dos amigos. Dava mesmo muita jararacuçu. Mas a gente escapou, nunca tivemos um picado, emenda Rebello.
Foi assim, de lembranças puxadas de meio século atrás, que aqueles 16 senhores reviveram tempos memoráveis de suas vidas. Tempos, reafirmaram muitos, que ajudaram a fazer deles os homens que são hoje. O passado é muito importante pro meu presente e pro meu futuro. Não consigo desligar um do outro, filosofa Jurandir Largura, o idealizador do encontro, garantindo que, no ano que vem, a reunião volta a acontecer.