llan Brenman, um dos mais importantes autores de livros infantis do Brasil, ganhador de diversos prêmios literários e traduzido em várias línguas, esteve em Itajaí participando da 1ª Festa da Literatura Infantil de Santa Catarina. Ele conversou com a jornalista Franciele Marcon sobre literatura, infância, educação e sobre a importância dos pais desacelerarem o ritmo e darem valores às coisas simples da vida: andar de mãos dadas com os filhos, assistir um filme, brincar no parque, compartilhar momentos de cumplicidade. Falou que tecnologia não precisa ser demonizada, mas precisa ser usada com equilíbrio e moderação pela criançada. Questionou o papel da escola pública brasileira, principalmente na primeira infância, que considera deficitária e abandonada pelo governo. E desmistificou a verdade de que escrever para a criança é fácil. São os leitores mais críticos, assegura Ilan. Para completar, ainda deixou um conselho: que os adultos leiam mais aos pequenos, pois os momentos de leitura são memórias afetuosas que guardamos para o resto da vida. As fotos são de Elton Damásio.
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Eu sei que boas histórias, que não são politicamente corretas por essência, fazem as crianças pensarem, e o pensamento muda o mundo
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A gente adultiza a infância, e infantiliza o mundo adulto, por causa do não brincar na idade certa
Raio X
NOME: Ilan Brenmann
NATURALIDADE: Nasceu em Israel. Mora em São Paulo desde 1979.
IDADE: 42 anos
ESTADO CIVIL: casado
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FILHOS: duas filhas
FORMAÇÃO: Formado em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo; mestre e doutor em Educação pela Universidade
de São Paulo (USP)
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL: começou a escrever livros em 1992. Desde 1997 já publicou mais de 60 livros infantis e juvenis. Ganhou diversas premiações, entre elas o selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil. Pela mesma fundação ganhou três prêmios: Melhor livro para Crianças 2011, pelo O Alvo (Ed. Ática); Melhor livro de reconto 2009, pelas 14 Pérolas da Índia (Ed. Binque Book), Melhor livro-Imagem 2010, Telefone sem Fio (Ed. Cia da Letrinhas). Desde 2011, os livros ultrapassaram as fronteiras brasileiras e são publicados na Dinamarca, Suécia, Itália, França, Espanha, Coréia, México, Polônia e China. Tem uma coluna mensal na Revista Crescer Palavórios e Rabugices, e dois boletins semanais na Rádio CBN sobre Literatura e Educação. Ele percorre o Brasil e o mundo dando palestras e participando de mesas de debate em feiras de livros, escolas e universidades.
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DIARINHO Qual o desafio de escrever para a criança?
Ilan Brenman: Um dos leitores mais exigentes, críticos e sinceros que existe. A palavra sincero vem do latim: sem cera. Crianças são realmente sem cera. Quando elas gostam, gostam. Se elas não gostam, não gostam. Adultos mentem muito. Você pode fazer um livro para o adulto, ele será educado e falará: legal, interessante. E, por dentro, estava pensando: não gostei. Criança é um ser muito autêntico. Agradar a criança é um desafio. Me irrita muito porque as pessoas acham que escrever para a criança é uma coisa fácil e qualquer um pode escrever. Eu não posso acordar e falar: eu vou ser médico hoje, eu vou ser engenheiro. Mas para a literatura infantil tem muito isso. O cara tem outra profissão e quer virar autor infantil, quer começar a escrever, como se fosse uma coisa fácil... Tem essa impressão de que qualquer coisa serve para a criança, e isso é um grande erro. Carlos Drummond de Andrade tem um livro que se chama Confissões de Minas, e no livro ele coloca em xeque a questão da literatura infantil. Para ele, a literatura é uma só: ela é boa ou ela não é boa. O receptor vai ser infantil, adulto... Cecília Meirelles também falava o quão difícil é escrever para a criança. O [José] Saramago fez um livro para criança e falou como foi difícil. Mostrar como eles são inteligentes, poéticos, filósofos... Você precisa trabalhar muito, estudar muito. Eu acho um público maravilhoso.
DIARINHO O senhor escreve politicamente incorreto para as crianças? Como é isso?
Ilan: Eu não me proponho a fazer o politicamente incorreto. Eu me proponho a fazer literatura e a boa literatura não pode ser politicamente correta. O meu Doutorado na USP [Universidade de São Paulo] fala sobre isso. Eu, como autor, me sentia muito incomodado. Não conseguia entender como histórias populares, contos, recontos, contos antigos, alguns professores achavam que estimulavam à violência. São histórias antigas, se elas sobreviveram até hoje, é porque têm alguma coisa para falar. A gente sublima. Noticiário policial, seis da tarde, com aqueles apresentadores sanguinolentos, pode?! Eu comecei a falar muito sobre isso e começou a me incomodar como autor. Eu faço uma literatura que não pensa em formar cidadão. A coisa mais chata do mundo: livro para formar cidadão. Quem sou eu?! Eu sou um autor que quer compartilhar histórias. Isso já é muito. E boas histórias. Eu sei que boas histórias, que não são politicamente corretas por essência, fazem as crianças pensarem, e o pensamento muda o mundo. Ela pode se tornar um cidadão consciente em relação a milhões de coisas, ser tolerante. Isso vem como consequência do pensamento, de um pensamento crítico. Quem forma cidadão consciente é pai e mãe. É professor. Os professores falam: olha, Ilan, eu gosto muito de ecologia, acho isso importante. O professor sai de sala de aula, vai fumar e joga a bituca no chão. É isso que a criança absorve, não é o texto! Quem educa, quem faz o papel de educar somos nós, adultos. Eu mostro para minhas filhas que tem que parar na faixa de pedestre, por exemplo, mas eu não vou escrever um livro sobre isso, porque é chato. A criança não precisa disso. Ela precisa ver o pai fazendo isso. Conheço casais que falam: eu quero livros para os meus filhos que combatam a violência e eles se matam em casa. Eles se matam! Um xinga o outro. Isso a criança absorve...
DIARINHO Com o avanço da tecnologia, como um livro pode concorrer com um vídeo game ou com um tablet no despertar do desejo da criança?
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Ilan: A tecnologia está dada, é inevitável. Ela é como a manteiga, o pão e a faca. A faca pode pegar a manteiga para passar no pão. A mesma faca pode matar. A ferramenta é para matar ou para passar uma simples manteiguinha no pão. A tecnologia é uma ferramenta, está lá, é o uso que a gente faz dela... Tem que ter um equilíbrio. O pai terceiriza essa tecnologia na mão do filho, para ele se virar com essa tecnologia, e isso cria um dano. Tenho um programa na CBN, de São Paulo, e eu dou muitas palestras. Os pais reclamam que a vida tá corrida, trabalham várias horas por dia. Chega no final de semana, é o momento do encontro. Daí, eles entram no restaurante e dão o celular para um moleque de dois anos. Enfia o celular ou o tablet desde o momento que sentou a bunda na cadeira até o final da refeição. Não trocou uma palavra. Não compartilhou um gesto, um carinho. A comida é fundamental na vida da gente. Eu amo almoçar com as minhas filhas. Eu não admito ninguém com o celular. A competição com o livro não existe. O livro dá de 10 a zero em qualquer tablet. Se você coloca um tablet e um livro muito bonito na frente de uma criança, não tem competição. O Borges [escritor argentino Luiz Carlos Borges], dizia: os livros estão mortos na biblioteca e ganham vida quando a gente tira eles de lá. Eles são ressuscitados diariamente. O livro precisa de um mediador. O pai precisa levar o livro, mostrar, compartilhar.
DIARINHO O que é mais importante: os pais lerem livros aos filhos ou tentarem que os pequenos leiam sozinhos?
Ilan: As duas coisas são muito legais. A academia de Pediatria Americana tem uma indicação para os pais de que até os dois anos seria melhor as crianças não terem contato com o tablet. Já fizeram pesquisa mostrando que isso não faz bem para crianças. Depois dos dois anos, fazer com muita delicadeza, com um tempo bem estabelecido, falando que o livro de papel cria uma relação afetiva. Coisas que a gente já sabe há 20 anos: relação afetiva e cognitiva. Dez a zero para os livros. A criança pequena necessita da voz dos pais. Eu sempre falo: pais, por favor, usem a voz de vocês. A voz de vocês é a marca do futuro. Quando as crianças estiverem velhinhas, vão lembrar de vocês contando histórias. Não vai ser a voz do I-phone. Use a sua voz, fale. Eles vão crescendo e ganhando autonomia, mas nessa primeira infância, é importante eles ouvirem os pais.
DIARINHO A tecnologia pode contribuir no processo de educação?
Ilan: O negócio é saber usar. Vamos usar essa ferramenta na área educativa, acho bárbaro, tem aplicativos, programas educativos que são maravilhosos. Os Estados Unidos fizeram pesquisas mostrando que nas cidades que deram tablets às crianças, elas começaram a ir mal na escola. O tablet era uma distração. Você precisa ter um mediador. Se der na mão da minha filha o tablet, ela pode ficar três, quatro horas nos jogos. Não vai estudar. Você precisa que o mediador entre e fale: agora, você vai entrar no programa da escola. O carne e osso é fundamental.
DIARINHO O senhor tem livros traduzidos na Dinamarca, Suécia, Itália, França, Espanha, Coreia, México, Polônia e China. Os textos despertam interesse universal, independente da nacionalidade e da cultura da criança?
Ilan: Sem sombra de dúvida. Eu fico chocado, às vezes, com os livros que eles pedem para traduzir. Os títulos que eles escolhem são os títulos que falam das minhas filhas. Isso prova que a criança é universal. Editor da China, da Polônia, da Alemanha. A infância é universal. A infância sonha, tem pesadelo, quer ficar com o pai e com a mãe, tem medo de lobo e de monstro; são corajosos, curiosos.
DIARINHO Rubens Alves, em suas crônicas, sempre questionava o papel da escola e chegou a mencionar que a escola podia também engaiolar pássaros. Qual a sua visão da educação nos dias de hoje?
Ilan: Educação vem da palavra latim ex ducere, ex é tirar, ducere é para fora. Educar é tirar do outro o que ele tem de melhor. Se a educação cumpre isso, maravilha. Tem escolas que conseguem fazer isso, tem outras que mais ou menos e outras que não conseguem. Acho que nas escolas particulares os pais dão um jeito de encontrar a que tem mais a ver com o perfil do filho. A questão principal é a escola pública. A escola pública brasileira é resiliente. Eu encontrei nas minhas viagens experiências e equipes pedagógicas de escolas públicas do nordeste, do norte, do sul, experiências espantosas, com coisas que resistem. É tudo contra, mas são experiências que resistem. É pouco em relação ao que a gente precisa. O Brasil joga contra a educação pública. Eu acho lamentável o que se paga aos professores neste país. Você tem escola caindo aos pedaços, sendo que você tem de um lado bilhões escoando do bolso de pessoas. Uma vergonha. A educação infantil está às traças. As creches prometidas, às traças. Qualquer pesquisador, de qualquer parte do mundo, da neurociência, fala assim: a primeira infância é tudo para o aprendizado. Desde a comida, o banheiro. A criança com diarreia aprende menos. Isso qualquer cara do século 19 já sabia. A gente está em uma fase muito maluca: você tem noventa e poucos porcento dos alunos na sala de aula, na educação básica, que é uma conquista, mas é só isso. Colocou dentro, mas é precário. Eu sou um grande defensor da primeira infância nas escolas, se a gente conseguir fazer isso bem feito....
DIARINHO O senhor escreveu brincar consola, repara, faz esquecer e lembrar ao mesmo tempo, nos vincula com os outros e com a vida. Nos dias de hoje, as crianças acabam atropeladas pela rotina sobrecarregada dos pais e de seus próprios compromissos. É preciso reservar um tempo só para brincar?
Ilan: Sem dúvida. As crianças estão muito adultizadas. Os pais querem apressar a infância das crianças, o processo, e elas deixam de brincar. Então, você tem escolas em São Paulo, loucas, que tiram o recreio. Porque não tem tempo, o vestibular, aquela coisa louca... As roupas, o jeito de falar, as crianças vão crescendo muito rápido. O que acontece, se tornam adolescentes, jovens, e cria um buraco do não brincar. O que eles fazem: viram porras-loucas. Daí tem a coisa da bebida, da imaturidade. A gente adultiza a infância, e infantiliza o mundo adulto, por causa do não brincar na idade certa. O processo é completamente louco. Por isso é paradoxal, você tem jovens adultos, de 20 a 25 anos, que não tiveram infância e querem resgatar em um momento que já passou. O adulto transforma em brincadeira de adulto. O cinema, futebol, ir para a praia. Mas você tem comportamento de jovens adultos como de criança. [A gente chama de brincadeiras da quinta série...] Exatamente. Que é essa coisa de brincar em fases erradas. Eu falo bastante em preservar a infância, ter esse momento nas fases corretas e isso vai ajudar os adultos. [O brincar inclui a tecnologia? Ou o brincar tem que ser boneca, bola, rua?] As duas coisas. Tudo é uma questão de tempo. As pessoas falam a televisão é um lixo, a internet.... A questão é o tempo que você fica exposto. Se você fica 10 horas na internet, você vira um ser antissocial. Você não se relaciona. Mas dentro disso, principalmente para a criança, tem que ter chão, terra, correr. Não tem espaço? Leva para um Sesc, você tem que dar um jeito. Faz arte, pega papel, guache...
DIARINHO Um dos seus livros é Até as princesas soltam pum. A ideia foi desmistificar o glamour dos contos de fada ou o senhor teve alguma outra intenção?
Ilan: Não. Eu não escrevo pensando nisso. Se eu pensasse nisso não faria sucesso. Os meus livros nascem do cotidiano, de momentos engraçados; eu chamo de bolo das formigas, e transformo em literatura. Me interessa o microscópio, me interessa o invisível. O quase visível me interessa. E transformo isso no visível, que é o livro. Até as princesas soltam pum... nasceu de um pum de verdade. Mas meu livro é adorado por grupos feministas na Europa. Uma mãe chegou para mim, um ano depois de lançar o livro, e disse: seu livro foi libertador para a minha filha. Porque a liberou dos gases que ela tinha e a liberou de uma imagem de princesa que ela tinha. Eu falei para a mãe: não foi minha intenção, mas eu fico muito feliz que serviu. Isso é literatura. Clarice Lispector não escrevia pensando no leitor. Ela falava se não escrevo, eu enlouqueço.
DIARINHO Qual a dica que o senhor deixa para os pais aproveitarem bem as diferentes fases dos filhos?
Ilan: Passa rápido, crescem rápido, e depois não tem mais jeito de querer compensar. Aliás, a fase do compensar é uma coisa terrível. O pai não consegue mais ver o filho e compensa com presentes. A vida é memória! Por isso, a pior doença do mundo é Alzeihmer. Perder a memória é perder a vida. A vida é memória. A gente vive por causa da memória. Tudo que interessa na nossa vida é a memória. Daqui a 40, 50 anos, quando a gente parar para conversar, o que a gente vai avaliar não vai ser que ganhou o I-pad quando tinha cinco anos, ou se foi viajar para a Disney 50 mil vezes. Não! A gente vai avaliar o amor do pai e da mãe, as relações, as viagens juntos, as alegrias, as tristezas, as superações. Tudo que tem a ver com a memória e com o afeto. Eu fiz uma pesquisa informal, com base em uma pergunta de um filme é um plágio isso, eu falo que é um plágio na pesquisa. O filme tem uma cena e uma pergunta para o adulto: o que você faria se sua casa pegasse fogo . O que você salvaria?. Eu peguei essa mesma frase e levei para o mundo infantil: a sua casa está pegando fogo, o que você salva?. Perguntei para crianças da periferia de São Paulo, para minhas filhas, para classe média. Gente, quase 100% das crianças; ricas, classe média ou pobres responderam: vou salvar o meu pai, minha mãe, o cachorro, as fotos, o álbum. Um menino falou o vídeo game. Não falaram do tênis, do I-pad, eles queriam salvar memórias, queriam salvar afetos. Isso que importa: a memória e o afeto. Sabendo disso, os pais têm que parar um pouco dessa correria louca, olhar para os filhos e saber que eles gostam de coisas simples. Se você não comprar um I-pad, o que importa é andar de mão dada. É estar junto, compartilhar histórias, falar do seu passado, mostrar como foi a sua infância, enfim, o relacionamento. Isso não tem preço e isso que vai ficar para o seu filho, para sua filha, para o resto da vida. Não vai ser o brinquedo que você comprou, não vai ser o 14º tênis de R$ 500. O que vai ficar na memória, vai ser o livro que você abriu e leu. O filme que assistiu junto, grudadinho, comendo pipoca; andar no parque um tomando sorvete. Isso fica.
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