Entre os apostadores, quase metade (47%) está endividada e cerca de 4 milhões (16%) veem as apostas como forma de investimento. Os dados preocupam especialistas em saúde mental, que observam impactos desse comportamento em consultórios, inclusive na região da Amfri.
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Em Itajaí, o psicólogo Richard Reichert, especialista em dependências químicas e comportamentais, relata aumento de atendimentos por envolvimento excessivo com apostas. “Não conseguimos, neste momento, definir a situação local com precisão porque não há estudos específicos”, afirma. Mas observa que os casos são frequentes e, geralmente, chegam ao consultório quando o prejuízo já está instalado — emocional, financeiro ou relacional.
Quando a aposta deixa de ser diversão
Segundo Richard, o processo de adoecimento costuma começar silenciosamente. A pessoa não percebe o exagero e acredita que tem controle. “As pessoas de modo geral se encontram inicialmente numa fase que nós psicólogos chamamos de pré-contemplação, quando elas não identificam problemas relacionados às práticas de apostas”, explica.
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É comum esconder o envolvimento, mentir sobre valores perdidos e seguir apostando para recuperar o que foi perdido. “Outros sinais envolvem também as mentiras, no sentido de as pessoas esconderem as consequências de seus próprios comportamentos, ou mesmo o aumento do envolvimento com esses comportamentos, ou a continuidade, mas a realidade é que a pessoa continua apostando, muitas vezes em busca de recuperar aquelas perdas que ela teve.”
O psicólogo destaca três indicadores que mostram quando a aposta vira problema: frequência (quantas vezes a pessoa aposta por dia ou semana), intensidade (grau de envolvimento) e impacto (interferência em áreas como trabalho, estudos e relações).
O cérebro capturado pelas apostas
As plataformas digitais não operam ao acaso. Segundo o especialista, esses sistemas são desenhados para prender o usuário, ativando áreas do cérebro ligadas ao prazer e recompensa. Isso gera um ciclo em que o apostador busca repetidamente a sensação dos primeiros ganhos.
“Essas plataformas utilizam de mecanismos muito bem conhecidos pela psicologia. Elas sabem que as pessoas tendem a sentir mais as perdas e que determinadas regiões do cérebro serão ativadas por essas recompensas — especialmente quando envolvem dinheiro”, diz Richard.
No início, os ganhos são fáceis. Algumas plataformas oferecem bônus para incentivar a primeira aposta. Com o tempo, essas recompensas se tornam raras. Mesmo assim, o jogador insiste, tentando recuperar o que perdeu. O sistema de freio do cérebro — que deveria ajudar a parar — deixa de funcionar corretamente.
“Não por culpa, por responsabilidade ou por intenção por parte das pessoas, mas por mecanismos que são explorados por essas plataformas.”
Vício em apostas funciona como outras dependências
Para o psicólogo, o vício em apostas segue a mesma lógica de outras dependências, como álcool, drogas ou compras compulsivas. “Essas pessoas sentem muito mais as perdas. E o sistema de recompensa do cérebro, que deveria equilibrar o comportamento, não funciona como deveria. As regiões cerebrais acabam não se comunicando entre si como deveriam.”
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O prazer das apostas e a dor das perdas se misturam num circuito de difícil controle. “A continuidade desse comportamento mesmo diante dos prejuízos — não apenas financeiros, mas também familiares, profissionais e sociais — é uma das principais características da dependência.”
Da diversão ao alívio da dor
A aposta digital também pode servir de fuga para quem vive dificuldades pessoais ou financeiras. “Esse comportamento fica em função do alívio de determinadas sensações desagradáveis, de busca por escape de uma situação desfavorável pra pessoa, como, por exemplo, endividamento”, explica o psicólogo.
A ilusão de que a próxima aposta pode mudar tudo leva o jogador a continuar, mesmo diante de perdas. O dinheiro potencializa esse impacto, trazendo recompensas reais, como consumo, status e sensação de pertencimento — muitas vezes reforçadas por influenciadores que promovem os sites.
A influência dos influenciadores digitais
Um dos pontos mais críticos, segundo Richard, é o papel dos influenciadores na promoção das apostas. Muitos tratam as plataformas como oportunidade de lucro fácil e terminam suas falas com “jogue com responsabilidade”.
Para ele, o discurso é enganoso. “Mais uma vez atribuindo às pessoas a responsabilidade pelos próprios comportamentos, quando na verdade elas estão sob influência dos próprios influenciadores, da identificação que essas pessoas têm com essas pessoas que divulgam os jogos, essas apostas, porém sem ter consciência dos riscos envolvidos.”
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Essas campanhas ignoram os fatores emocionais, sociais e biológicos que moldam o comportamento. “Não é só uma escolha pessoal. É um comportamento influenciado por fatores sociais, biológicos, emocionais. É injusto e irresponsável culpar o jogador sozinho”, critica.
Quem está mais vulnerável?
Embora existam perfis mais comuns, Richard evita generalizações. “É muito difícil fazermos essa identificação. Uma alta observação é importante: se a pessoa tem uma tendência a se envolver de maneira excessiva com determinado comportamento, se há um histórico familiar, se há no convívio social pessoas que passaram por desafios semelhantes, isso já é um indicativo para que a pessoa possa tomar maior cuidado.”
Ele também alerta para não estigmatizar pessoas em vulnerabilidade econômica. Embora estejam entre as mais afetadas, isso não significa que todas desenvolverão vício. “Falar em perfis específicos é perigoso. Isso é importante até para nós não estigmatizarmos.”
Jovens são outro grupo de risco. Ainda em formação emocional, são mais suscetíveis à influência de celebridades e à ideia de sucesso rápido por meio das apostas.
O papel da família e o caminho da recuperação
Na prática clínica, Reichert vê que a maioria dos pedidos de ajuda vem da família, que nota o comportamento compulsivo e os danos antes do apostador. Muitas vezes, o jogador já enfrenta angústia, prejuízos financeiros e emocionais.
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O primeiro passo, segundo ele, é acolher com empatia. “O que nós sempre indicamos é um acolhimento, né, sem julgamento, com empatia, para que as pessoas se sintam acolhidas, respeitadas, que possam iniciar ali um processo psicoterapêutico com tratamento, com acompanhamento profissional, acreditando que é possível mudança de comportamento.”
Ele destaca que o oposto da dependência não é só parar de apostar, mas também reconectar-se com pessoas, com atividades prazerosas e com recompensas saudáveis. O apoio familiar é essencial nesse processo.
Questão de saúde pública
O especialista também aponta a dificuldade de acesso a atendimento psicológico, especialmente entre os mais vulneráveis. Muitos não têm como pagar por consultas e, por isso, não conseguem o tratamento necessário.
Para ele, o vício em apostas deve ser tratado como questão de saúde pública. Isso exige políticas de prevenção, campanhas de conscientização, ampliação do atendimento gratuito e investimento em pesquisas regionais que revelem a realidade local.